Sob o Chapéu do bem comum

Chama-se “Economia para o Bem Comum”, nasceu na Europa e é um movimento que tem vindo a ser adoptado por um número crescente de indivíduos, empresas, associações e municípios. Recompensar os stakeholders económicos que se “comportem adequadamente, organizando-se a si mesmos de uma forma democrática, ecológica, cooperativa e humana” é uma das suas premissas, em conjunto com um ambicioso objectivo: convencer a União Europeia que é possível criar um “mercado ético” que sirva de exemplo aos demais continentes. E alguns passos estão já a ser dados nesse sentido

 

POR HELENA OLIVEIRA

 

Criado, em 2010, pelo austríaco Christian Felber, o qual esteve em Portugal recentemente para participar numa conferência da Gulbenkian sobre direitos humanos, o movimento “Economia para o Bem Comum” tem vindo a ganhar reconhecimento um pouco por toda a Europa. Felber é um orador internacionalmente conhecido, docente na Universidade de Economia de Viena, activista e bailarino de dança contemporânea. É também autor de vários livros, entre os quais se destaca “Change Everything: Creating an Economy for the Common Good”, sendo este – apenas traduzido para inglês em 2015 – que melhor sintetiza o movimento que criou, com o mesmo nome – Economy for the Common Good e que visa a implementação de um novo modelo económico para o futuro.

Nascido em 1972, Felber estudou Espanhol e tem formação académica em Psicologia, Sociologia e Ciências Políticas, ministrada em Madrid e Viena, onde vive e trabalha como escritor independente. E, em termos gerais, o seu movimento tem como objectivo transformar o sistema capitalista que “cria um sem número de problemas: desemprego, desigualdade, pobreza, exclusão, fome, degradação ambiental e alterações climáticas”. A solução, que não é propriamente inovadora, passa por criar um sistema económico alternativo, que “coloque os seres humanos e todos os ‘seres vivos’ no centro da actividade económica”.

As abordagens para a criação de economias alternativas que sirvam “os interesses de todos” ou para “remodelar” o velho capitalismo predatório têm vindo a ganhar mais fama do que proveito ao longo dos últimos anos, apesar de existirem algumas que estão a começar a dar alguns frutos. O VER tem vindo a acompanhar estas (r)evoluções organizacionais, as quais respondem por vários nomes, mas que têm em comum um conjunto de “valores” primordiais, nomeadamente o facto de o lucro e os impactos positivos na sociedade poderem viver em harmonia. A título de exemplo, em 2014, John Mackey escrevia um livro, com base no seu movimento de “Capitalismo Consciente”, que rezava que “os negócios são bons porque criam valor, que são éticos porque são baseados em trocas voluntárias, que são nobres porque podem elevar a nossa existência e que são heróicos porque retiram pessoas da pobreza e criam prosperidade”. Na altura, o movimento B Lab dava também os primeiros passos, sendo considerado na actualidade como um dos mais bem-sucedidos nesta “vontade de regeneração”, tanto em termos de expansão, como de resultados, como referiu ao VER Bart Houlahan, um dos seus co-fundadores em entrevista recente, e na qual assegura, também ele, que os negócios podem ser uma força para o bem. Neste momento, existem já mais de 1600 empresas certificadas com este novo “selo de excelência”, em 47 países e em representação de 130 sectores. O mesmo acontece com omodelo de criação de valor partilhado, teorizado por Michael Porter e Mark Kramer, e ao qual sobretudo as grandes multinacionais têm vindo a aderir. Uma outra iniciativa, e desta feita “nascida” também na Europa é a denominada The Leadership Vanguard , a qual se assume igualmente como um movimento que visa reinventar o modelo de crescimento actual, aquele que favorece a exclusão, é endemicamente ineficiente e tem como base uma apreciação errada do valor. Com base numa “química de interacção” entre líderes, pensadores, empreendedores sociais e disruptores, esta abordagem assegura ser possível a transição para um novo modelo de crescimento, mais inclusivo e sustentável.

O mundo está a precisar, urgentemente, de uma economia alternativa que substitua os valores do egoísmo e do auto-interesse – próprios do capitalismo predatório – por aqueles que são subjacentes à maioria dos sistemas morais

Assim, e tendo em conta a profusão de novos modelos, iniciativas e movimentos, o que propõe esta “Economia para o Bem Comum”? Para já, um objectivo bem ambicioso: a proposta de uma aplicação na própria economia de “normas para os relacionamentos humanos em conjunto com valores constitucionais”. Ou, por outras palavras, que a economia comece por recompensar os stakeholderseconómicos que se “comportem adequadamente, organizando-se a si mesmos de uma forma democrática, ecológica, cooperativa e humana”.

Como afirma o próprio Felber, o mundo está a precisar, urgentemente, de uma economia alternativa que substitua os valores do egoísmo e do auto-interesse – próprios do capitalismo predatório – por aqueles que são subjacentes à maioria dos sistemas morais e que, na visão do movimento que ajudou a criar, incluem a dignidade humana, a cooperação e solidariedade (as quais, a seu ver, contam apenas como um valor único), a sustentabilidade ecológica, a justiça social e a co-determinação democrática em conjunto com a transparência.

Todos estes valores e boas intenções não parecem muito diferentes dos defendidos pelos movimentos e iniciativas acima referidos, mas e ainda bem. Todavia, de uma forma mais aprofundada, que princípios estão verdadeiramente a contribuir para que o movimento “Economia para o Bem Comum” (EBC) tenha sido adoptado por mais de 6700 indivíduos, 2 000 empresas, 264 associações e 65 políticos?

Para já, porque esta economia para o bem comum constitui uma alternativa, é baseada em valores que promovem as necessidades de toda a população e consiste numa ferramenta que visa promover a mudança não só económica, como política e social, funcionando como “uma ponte para um futuro melhor”. De uma forma mais concreta, e no que à economia diz respeito, a EBC é viável para empresas de dimensões e estruturas legais diversificadas, sendo o seu objectivo avaliar o sucesso da gestão de negócios que se baseiem em valores orientados para a promoção do bem comum. E, também ao nível político, o movimento espera vir a trazer alterações à legislação corrente. Apesar de não ter ainda alcançado este patamar, como referiu o próprio Felber numa entrevista ao Observador , no que respeita à alteração das regras legais do jogo, já as conseguiram levar “junto dos corpos políticos eleitos, desde os municípios até ao Parlamento Europeu” (v. Caixa).

Mas recuemos até 2010 – a data oficial de lançamento do movimento, e também do livro, em alemão, que visa “mudar tudo” e “criar uma economia para o bem comum”

© DR

O dinheiro como meio e não como fim

Tal como as demais correntes que visam alterar a economia ou o capitalismo, o ponto de partida é sempre o mesmo: a ordem económica vigente não é capaz de proporcionar bem-estar, justiça social ou sustentabilidade ambiental, mas a boa notícia é que este sistema “danificado” tem conserto. Comum é igualmente a questão da praxe: qual o verdadeiro objectivo da economia? A resposta é clara na maioria dos casos: a criação de riqueza consiste no principal propósito da economia, pois nada é mais valorizado do que os resultados financeiros das actividades económicas. As empresas e os gestores trabalham para maximizar os seus lucros. Os investidores baseiam as suas decisões de investimento no potencial retorno financeiro que irão retirar do montante investido. Os governos trabalham para garantir um aumento no PIB.

Tal como as demais correntes que visam alterar a economia ou o capitalismo, o ponto de partida é sempre o mesmo: a ordem económica vigente não é capaz de proporcionar bem-estar, justiça social ou sustentabilidade ambiental, mas a boa notícia é que este sistema “danificado” tem conserto

Tudo isto parece indicar que, indubitavelmente, seja a riqueza o objectivo primordial de qualquer actividade económica. Mas não para Christian Felber, que considera o vil metal como um “simples” meio para se atingir um fim bem mais nobre: o do bem comum. Como parte da sua reflexão, o professor austríaco inclui também as discrepâncias existentes entre os objectivos do capitalismo e os valores humanos mais básicos. Se o capitalismo encoraja a acumulação de riqueza pessoal, a competição e os comportamentos egoístas, a verdade é que, na sua essência, os seres humanos não foram formatados para serem orientados por estes valores. Ao invés e desde os primórdios da humanidade, as pessoas uniram-se para melhor satisfazer as suas necessidades básicas, privilegiando sempre as formas colectivas de o fazer, ou seja, cooperando. “E é isso”, escreve o autor, “que torna os seres humanos em seres sociais”.

Relembrando que há já vários anos que diversos economistas, várias organizações da sociedade civil, activistas e um conjunto significativo de empresas alertam para uma necessária reformulação das nossas prioridades económicas, e sendo cada vez mais aceite que os sistemas económicos devem ser concebidos para servir as pessoas e o planeta e não o contrário, a verdade é que a ordem económica actual continua a ser baseada na premissa da perseguição do lucro individual, no interior do contexto do livre mercado e de uma economia em “crescimento” que, como convém, trará bem-estar e coesão social para todos.

E é aqui que Felber discorda. Na verdade, e a seu ver, o que está a acontecer, em particular nos últimos 40 anos, é que apesar de estarmos a viver um período de liberalização e crescimento económicos sem precedentes, o mesmo é caracterizado por desigualdades sociais crescentes – no interior e entre os países -, por uma desagregação comunitária, acompanhada de uma preocupante destruição ambiental e por um número cada vez maior de conflitos internacionais em torno da exploração dos recursos naturais. E é por tudo isto que algo tem de mudar, acredita Christian Felber: ao se alterar o objectivo principal da actividade económica esta mudança irá, necessariamente, obrigar a uma “revisão” e consequente transformação das estruturas económicas vigentes. Estas terão, assim, de ser reorientadas para a criação do bem comum, através do estabelecimento de condições que permitam a cada ser humano florescer no interior de limites ecológicos bem definidos.

Em teoria, tudo isto é muito bonito e, aparentemente, passível de ser executado. Mas e como, e que modelo é proposto por Felber e os seus acólitos para que esta mudança seja eficiente e eficaz?

© www.ecogood.org

A metodologia, a matriz e os balanços do bem comum

Para começar, o autor propõe uma “alteração metodológica”, ou seja uma mudança da competição – o método utilizado no actual modelo para se aumentar o lucro económico – para a cooperação. Depois, e tendo em conta que a mudança sugerida por Felber é holística – na medida em que é desenvolvida em simultâneo em três áreas por excelência – pessoas, empresas/organizações e governos -, é necessário o desenvolvimento de várias ferramentas, de uma forma cooperativa, para permitir que as alterações ocorram aos vários níveis. Neste mundo em que o que não pode ser medido, não pode ser gerido – e se o principal objectivo da actividade económica actual é o dinheiro – o sucesso económico é igualmente avaliado de acordo com o montante de dinheiro acumulado por estas mesmas pessoas, empresas e nações. Assim, a economia para o bem comum não pode fugir a esta regra e terá de ter, também, uma medida de avaliação, apesar de o “sucesso” ser de uma outra natureza: a de saber se se está a contribuir ou não para o almejado bem comum.

Se o capitalismo encoraja a acumulação de riqueza pessoal, a competição e os comportamentos egoístas, a verdade é que, na sua essência, os seres humanos não foram formatados para serem orientados por estes valores

Tal como acontece, por exemplo, com a certificação das B corps, também Felber e outros membros do seu movimento desenvolveram um “balanço” para o bem comum que ajuda as empresas a avaliar o seu impacto relativamente às pessoas e ao planeta. Ou seja, e em vez de medir o retorno financeiro de determinada actividade de negócio, este balanço mede, ao invés, o impacto que a mesma tem na sociedade e/ou no ambiente, permitindo responder a perguntas como: “as nossas actividades ajudam ou prejudicam a democracia?”; “melhoram ou prejudicam a coesão social?”; “facilitam ou impedem relacionamentos positivos?”; “protegem ou destroem os ecossistemas?”; “reduzem ou aumentam as desigualdades sociais?”, e assim por diante. A ideia de um “rótulo” e/ou certificação de bens e serviços que resultem deste balanço poderá ajudar também os consumidores a fazerem as suas escolhas, não as restringindo apenas ao seu custo.

Mas e antes de se passar a esta ferramenta de avaliação, o movimento desenvolveu também uma “matriz para o bem comum”, a qual pretende contribuir para uma “passagem positiva” por parte das empresas e organizações do “velho” modelo económico para o “novo”. Esta matriz é constituída por 17 indicadores, os quais resultam do cruzamento dos cinco principais valores da Economia do Bem Comum – dignidade humana, solidariedade, sustentabilidade ecológica, justiça social e democracia ou transparência – com os diferentes stakeholders da empresa ou organização em causa, sejam eles fornecedores, investidores, trabalhadores, accionistas, clientes e ambiente social. O resultado da aplicação desta matriz, seguido da avaliação dos seus indicadores, pode ser considerado como uma extensão natural de um plano de negócio, cujas melhorias podem ser expressas num esquema de pontos entre 0 e 1000. A avaliação é colocada “por escrito” no já referido balanço, que consiste num documento “aberto” que deverá ser comunicado e partilhado com todos os stakeholders e com o público em geral. É igualmente possível dar início a uma avaliação feita por “pares” ou optar por uma auditoria externa.

Os cinco principais valores da Economia do Bem Comum incluem a dignidade humana, a solidariedade, a sustentabilidade ecológica, a justiça social e a democracia “transparente”

Na medida em que o movimento Economia para o Bem Comum não funciona com base em hierarquias, privilegiando a “organização horizontal”, estas e outras ferramentas estão a ser desenvolvidas de uma forma democrática e cooperativa. Um bom exemplo desta realidade reside na adaptação da matriz acima mencionada para os munícipios, em conjunto com a participação das comunidades correspondentes que, em conjunto, começam por definir o que significa, no seu contexto em particular, o bem comum e o bem-estar, tanto a nível geral, como também particularizando-os, de seguida, de acordo com a importância que cada item poderá ter nas suas vidas, estejamos a falar de educação, saúde, ambiente, espiritualidade, desenvolvimento profissional, relacionamentos, etc.

Em termos gerais, este tipo de ferramentas está não só a permitir que as empresas avaliem o seu impacto social de acordo com valores universais, como os mesmos podem e devem ser extensíveis a comunidades diversas, como está já a acontecer com aquilo que denominam como “local chapters”, ou redes independentes de indivíduos e empresas que partilham os mesmos objectivos da EBC e os apoiam no interior de uma localização geográfica específica. Neste momento, a rede de “local chapters” cobre já países tão diferentes como a Áustria (sim, o país natal de Christian Felber), Argentina, México, Itália, Holanda, Peru, Suécia e, entre outros, Portugal.

No âmbito das estratégias de responsabilidade social das empresas da União Europeia, a existência de incentivos públicos para organizações que cumpram determinados princípios éticos e ecológicos está já em vigor para o período de 2016-2020 e o movimento em causa está a ganhar terreno

Como também já foi referido, a ideia parece estar também a avançar ao nível político. Na União Europeia, e através do Comité Económico e Social Europeu, que faz a ponte entre as instituições europeias e a sociedade civil, os méritos e a aplicabilidade de um conceito para um modelo económico mais sustentável está já a ser analisado. E, na verdade, no próprio website do Comité, várias orientações directamente retiradas do modelo da Economia para o Bem Comum podem já ser consultadas, com algumas empresas certificadas pelo movimento a serem “preferidas” – ou a terem prioridade – na adjudicação de contratos públicos. No âmbito das estratégias de responsabilidade social das empresas, a existência de incentivos públicos para organizações que cumpram determinados princípios éticos e ecológicos está já em vigor para o período de 2016-2020 e o movimento em causa está a ganhar terreno (v. caixa).

Por fim, mas não menos importante, este novo modelo económico está também a ser tema em debate no mundo académico e, em particular, na Europa University, em Flensburg, na Alemanha, está a ser realizado um projecto de investigação, com a duração de três anos, que compara a EBC com outros modelos de “economia sustentável”, incluindo até pesquisa empírica proveniente do Deutsche Post, os serviços postais alemães.


© DR

O Mercado Ético Europeu será a “marca” do Velho Continente

Comité Económico e Social Europeu (CESE) emitiu um novo parecer sobre a Economia do Bem Comum (ECB) considerando-a um modelo holístico que serve como “chapéu” para canalizar as propostas de outros modelos económicos alternativos, como a economia colaborativa, a economia solidária, a economia circular, o cooperativismo, as empresas sociais, a economia azul, entre outros. Este parecer propõe a transformação do mercado económico europeu num “Mercado Ético Europeu” no qual as políticas e estratégias públicas favoreçam as actividades que contribuam para o bem-estar dos cidadãos e para o bem comum, em detrimento de outras que não ofereçam qualquer tipo de valor desta natureza. Desta forma, acreditam os promotores, será possível criar emprego de qualidade e a Europa voltará a ser vista pelo resto do mundo como o exemplo a seguir no que respeita ao meio ambiente e aos direitos sociais. De acordo com o CESE, o “Mercado Ético Europeu” será a “marca” da Europa no que respeita às políticas económicas e comerciais, constituindo uma volta de 180 graus face ao actual colapso económico e social em que vive o continente. Entre as propostas específicas apresentadas, destacam-se as seguintes:

  • Medição do contributo para o bem comum por parte das empresas através do denominado “Balanço do Bem Comum”;
  • “Etiqueta” ou “rótulo” ético: identificar, nos produtos, a sua pegada ecológica e social, com vista ao cumprimento dos direitos humanos e laborais em toda a cadeia de valor;
  • Compras públicas éticas: adopção de políticas destinadas a reconhecer as empresas que mais contribuem para o bem comum, tais como contratos públicos éticos e a promoção do comércio ético a nível interno;
  • Incentivo a todos os tipos de empresários/empreendedores que criem organizações destinadas a contribuir para o bem comum;
  • Promoção do consumo ético e sensibilização dos consumidores europeus;
  • Banca Ética: diversificação do ecossistema financeiro através da promoção de redes de bancos e mercados de acções éticas em toda a UE;
  • Bolsa do Bem Comum: criação de um mercado de valores no qual se incluirão apenas as empresas que demonstrem o seu contributo para o bem comum, fomentando e facilitando deste modo a “inversão” ética.

Artigo publicado em “Valores, Ética e Responsabilidade” – ACEGE – 2 junho 2016

 

Scroll to Top