Artigo publicado em Voz Portucalense, em 1 de outubro de 2014, escrito por António Poças
Na lógica corrente, há disjuntivas que não se podem colocar: – há realidades que ou são uma coisa ou outra. E quando se coloca a disjuntiva, é para sofismar acerca de assuntos indiscutíveis. Realidades palpáveis, indiscutivelmente identificadas por todos, não podem ter leituras contrárias. O preto nunca poderá ser branco, ou vice-versa; bondade e maldade não se confundem… Quando falamos da vida, entramos numa esfera que não é assim tão pacífica, talvez por se tratar daquele valor supremo, relativamente ao qual todos os outros se subordinam.
A vida é um dom que se recebe, que nos é outorgado de forma gratuita. Não a pedimos, não a reclamamos. Foi ela que nos colocou no seio do tempo, num lugar determinado do espaço onde tantos outros seres como nós e outros diversos de nós se movem, crescem, vivem, partilham experiências e morrem…
A vida é uma mundividência, uma coexistência, um suspiro breve na imanência, uma partilha de tantos bens comuns, um esgar que, no caso do homem, dotado de racionalidade e vocação de infinito (transcendência) se torna num assunto nunca pacificado de tantas questões insolúveis.
Mas, desde que se inicia, a vida passa, indiscutivelmente à categoria de direito inatacável. Não um direito abstracto, subjectivo, transferível, questionável. É um direito absoluto, ainda quando um sujeito deva ser afastado do convívio social por se constituir uma ameaça para a sobrevivência dos outros. A vida é tão sagrada no seu início, logo que o dom se corporiza na pessoa, que o próprio Deus se sente como que ultrapassado, impossibilitado de a manipular, de se retractar dela, de se arrepender de ter concedido esse dom e por isso a respeita de tal maneira que quer que a vida seja intocável. (…) Se o dom da vida e o direito à vida, desde que ela começa são absolutos correlatos que se aplicam ao homem todo e a todos os homens, teremos que rever muitas virtudes que lhe estão associadas e fazer delas um exercício diário de autoanálise, autocrítica ou exame de consciência, se assim quisermos. A liberdade, a igualdade, a fraternidade, a alteridade, a corresponsabilidade, a justiça, o respeito pela dignidade de todos e de cada um, a defesa incontornável do direito à vida… são as interrogantes que nos acompanham cada dia.
Ainda que o crime aconteça que o atropelo dos direitos mais elementares seja uma trágica constatação, nem por isso, ou talvez por causa disso, a vida continua a ser um dom e um direito.