Tempo para viver, tempo de morrer

Estava longe de tencionar abordar este tema, quando ontem me sentei para redigir o meu habitual artigo para o Jornal da Família. O telefone tocou e escutei voz conhecida: “O seu amigo está no fim. Venha dar-lhe a Santa Unção…” Corri para o Hospital. Encontrei-o, sem outra reação que o reflexo da respiração assistida difícil, os olhos a perder brilho como lâmpada a extinguir-se. Para ele implorámos a graça final d’Aquele que “vencida a morte, nos abriu as portas da eternidade”.

 

Conheci o Manuel, há muitos anos. Apareceu na Missa de domingo com a esposa, no primeiro banco. Veio cumprimentar-me com a ironia que nunca deixou de usar: “Aqui tem o maior pecador da Paróquia”. A partir daí, as nossas conversas iam dar à atualidade da Igreja e, com algum sentido crítico, às iniciativas da paróquia ou ao meu próprio discurso. A proximidade foi-se transformando em convivência, intimidade e partilha de pontos de vista.

Há um ano, comunicou-me quase abruptamente o diagnóstico duma doença degenerativa sem terapia conhecida. O seu horizonte de vida estava traçado por uma progressiva perda de movimentos e funções até à paralisia definitiva dos órgãos vitais. Assim entrava no “corredor da morte”. O diagnóstico tornou-o consciente da sua “condenação à morte” e do processo de sofrimento físico, psicológico e espiritual que o conduziria até lá. Na realidade, todos estamos “condenados” à morte. A morte faz parte da condição de “ser vivo” do homem. É um dado certo no horizonte da vida do homem. Habitualmente desprezamo-lo, mas nada altera a sua inevitabilidade. O Evangelho previne: “Vigiai, pois não sabeis nem o dia nem a hora” (Mat 25, 13). O Manuel passava a ter uma indicação muito aproximada da sua hora e do percurso até lá.

Começaram aqui as minhas visitas regulares, às terças-feiras, e as nossas conversas a centrar-se na reflexão sobre a vida e a morte, perante a experiência concreta de quem vai morrendo e de quem o acompanha na fé e na amizade.

A sua doença foi uma ocasião de desafio e purificação da sua fé e esperança e também da minha. A vida para nós que acreditamos em Jesus é dom de Deus, oferta que se cumpre na aceitação das suas potencialidades e limites. E os seus limites são a morte e o sofrimento que podemos gerir dentro das nossas possibilidades de reação eficaz ou aceitação paciente da nossa impotência. Gerir a vida que se degrada num horizonte de morte anunciada é um problema terapêutico, mas sobretudo moral que se projeta no sentido que damos à vida, iluminado pela fé e esperança de quem acredita na Cruz, na Morte e a Ressurreição de Jesus.

Pedir o milagre é uma manifestação de fé no poder de Deus. Mas o milagre é a activação extraordinária desse poder e não a derrogação das leis da natureza. Pedimos no Pai-Nosso: “Seja feita a Vossa vontade…”. Jesus na agonia, ao rogar ao Pai o afastamento do cálice da Paixão, acrescentou: “Não se faça contudo a minha vontade mas sim a Tua” (Luc, 22, 42). Mero conformismo, sujeição à fatalidade do destino? Não. Comunhão ativa com Cristo no mistério da Sua Cruz e participação no seu valor redentor (Cf.  Mat, 16-24). O sofrimento existe, faz parte dos limites da condição humana. Desperdício? “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rom 8, 28) S. Paulo ousa afirmar com a experiência da sua fé que a cruz de cada um continua a ampliar o poder redentor da Cruz de Cristo: “alegro-me nos sofrimentos que suporto por vós e completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja (Col 1, 24).

Estamos no domínio da fé e da esperança teologal ancoradas na participação pessoal no mistério da ressurreição de Cristo: “Se morremos com Cristo cremos que também viveremos com Ele” (Rom 6, 8). Fuga da realidade? Da realidade sensorial, aparente, do mundo do desejo, sim. Mas a fé abre-nos para a realidade espiritual que responde à nossa aspiração profunda à plenitude da vida à vida eterna: “Se pusemos a nossa esperança em Cristo somente para esta vida, somos os homens mais dignos de compaixão” (I Cor 15, 19), numa palavra, falhados.

O Manuel faleceu poucos instantes depois de eu o ter deixado com o apoio sobrenatural do sacramento da Santa Unção. Do muito que fica da nossa amizade, é legado inestimável a experiência dos nossos encontros, acompanhando o ocaso da sua vida. Fica para mim sobretudo o testemunho de um homem de fé que nela encontrou a razão duma esperança que o confortou na dura espera da sua hora.

 

Escrito por Octávio Morgadinho e publicado em Jornal da Família, junho de 2016

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