Para um activista de direitos humanos, o mundo não é um sítio fácil. Basta abrir os jornais, folhear uma revista ou ir ao Facebook ou Youtube para perceber as inúmeras situações gravíssimas. Os Estados incumprem diariamente os seus deveres. O dever de protecção, o dever de prevenção. Afinal na miríade de tragédias diárias, quantas poderiam ser evitadas por uso de investigação ou educação de direitos humanos?
POR CLAUDIA PEDRA, Directora, NSIS – Network of Strategic and International Studies
Quando se trabalha em direitos humanos, invariavelmente vem o argumento do idealismo. Que um mundo sem violações de direitos humanos é uma utopia, e que por isso não tem qualquer relevância tentar prevenir situações de violação de direitos humanos. Claro que este pensamento é perigoso. A negligência das boas pessoas levou a que muitos horrores do passado (e do presente) se materializassem.
A citação normalmente atribuída ao pastor luterano alemão Martin Niemöller, adaptando um poema de Valdimir Maiakovski, sobre o facto de não restar ninguém para o defender quando foi levado para os campos de concentração, mostra claramente os perigos da indiferença e da inoperância. Realmente se todos ficarmos passivos perante as violações de direitos humanos e deixarmos que estas se agravem e escalem perante o nosso olhar, muitas das situações atingirão uma gravidade que de outro modo não aconteceria.
Há dois instrumentos muito eficazes na luta contra as violações de direitos humanos – a investigação (numa perspectiva mais de curto e médio prazo) e a educação para os direitos humanos (no longo prazo).
Quanto à educação de direitos humanos (EDH), existem claramente sociedades em que este tipo de educação é considerada crucial e muito embora não sejam isentas de violações, a gravidade e frequência das mesmas é bastante menor. A EDH desde o pré-escolar ao ensino universitário – correctamente ministrada por professores capacitados para tal – pode ser um importante instrumento na criação de gerações de pessoas não discriminatórias, que compreendem a dignidade humana como um valor intrínseco, independentemente do género, da cor da pele, da religião, da idade, do estatuto social ou de outras características diferenciadoras. A EDH é o mais poderoso dos instrumentos de prevenção das violações de direitos humanos, uma vez que a discriminação é a base da violência que permite que a mutilação genital feminina seja considerada uma “festa” ou que os pigmeus sejam alvo de “caçadas” no Congo.
A investigação da evolução dos direitos humanos mostra-nos padrões e escaladas de violência que terão resultados previsíveis
Quanto à investigação, o seu uso em termos preventivos é muitas vezes descurado. Podemos explicar isso com uma evidência. Todos os dias chegam relatos de centenas de vidas perdidas no mar Mediterrâneo; migrantes que não conseguiram terminar a travessia com sucesso. Fala-se de crise de refugiados e de uma “invasão” de pessoas, como se todo este fenómeno tivesse surgido sem aviso prévio e um dia milhares de pessoas decidissem fugir das suas terras sem razão aparente.
Para os investigadores, o fluxo de pessoas não só não surpreende como tem razões claramente identificadas. Os seres humanos migram por variadíssimas razões, sendo que podemos agrupá-las no que se chama habitualmente os Ds: democracia e direitos humanos, desenvolvimento e demografia. Sendo migração voluntária (emigração e imigração) ou forçada (pessoas contrabandeadas e traficadas, requerentes de asilo/ refugiados, deslocados internos, apátridas), as pessoas deslocam-se de modo a promover a sua segurança humana (ou a da sua família). Fogem da fome, da falta de emprego, das ditaduras, das guerras, da seca, do crime, da discriminação. Fogem da tortura nas prisões, das execuções extrajudiciais, dos desaparecimentos forçados, dos atentados à liberdade de expressão, dos assassinatos, da mutilação genital feminina, das mortes de honra, da perseguição por ser uma minoria étnica, dos atentados terroristas, etc., etc..
Estas situações de violações não são repentinas nem descontextualizadas. A investigação da evolução dos direitos humanos em certo país ou região mostra-nos padrões e escaladas da violência que terão resultados previsíveis. Quando um país tem 60% de jovens, o desemprego é plausível, se um país tem um ditador, os atentados à liberdade de expressão não tardarão, se o nosso país está literalmente a afundar por causa das alterações climáticas, pouco resta senão imigrar.
Descurar a prevenção e protecção dos direitos humanos é condenar milhões de pessoas a uma vida sem dignidade
Em certos países, entre as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado e pelos agentes não estatais, as pessoas estão literalmente entre a espada e a parede. Quando uma gravidez fora do casamento (mesmo que seja decorrente de violação sexual) dá direito a uma sentença de morte, e uma ida ao mercado acaba com um bombardeamento terrorista, e isto se torna recorrente e “normal”, muitos tomam a difícil decisão de partir. Mesmo que seja num barco frágil e com coletes salva-vidas que nem sequer flutuam.
Se pensarmos que existem inúmeros instrumentos internacionais que plasmam os direitos humanos e que os Estados têm o dever de proteger as pessoas e de prevenir que as violações ocorram, não se compreende como se pode negligenciar questões como a EDH e a investigação nessa prevenção. Atendendo a que muitos Estados incumprem nos seus deveres e os agentes não estatais assumem cada vez mais força, há que investir em pressão, campanhas, lobby e advocacy realizados por organizações e pessoas individuais, que poderão ajudar a proteger aqueles que já estão para além da prevenção.
Se regressarmos ao conceito de ser humano, esse ser com direitos inalienáveis, percebemos que descurar a prevenção (e posteriormente a protecção) é condenar milhões de pessoas a uma vida sem dignidade e sem direitos. E as notícias continuarão a estar povoadas de crianças sírias afogadas, de pessoas presas por escrever poemas ou de famílias que não conseguem comer diariamente. Com os instrumentos correctos, as notícias daqui a 20 anos poderão ser infinitamente diferentes e muito mais positivas.
Artigo publicado em “Valores, Ética e Responsabilidade” – ACEGE 14 julho 2016