O papa Francisco fala ao Congresso dos Estados Unidos e escreve a história

 

Abolição da pena de morte e do comércio de armas, acolhimento de refugiados e famílias, política orientada ao bem comum e não subserviente à economia e às finanças: o intenso discurso do papa aos 535 senadores e deputados norte-americanos

 

 

Washington, 25 de Setembro de 2015 (ZENIT.org) – Lincoln e seu trabalho por “um novo nascimento da liberdade” dos Estados Unidos. A marcha de Martin Luther King para alcançar o “sonho” de plenos direitos civis e políticos para os afro-americanos. Dorothy Day e sua paixão pela justiça e pela causa dos oprimidos. Thomas Merton, homem de oração e de paz entre os povos e religiões, que abriu novos horizontes para as almas e para a Igreja.

Eles são as imagens que pautam o longo e intenso discurso que o papa Francisco dirigiu aos 535 membros do Congresso dos EUA, que o acolheram já na entrada com uma ovação em pé de mais de 4 minutos. A visita ao Capitólio era um dos momentos mais aguardados desta viagem apostólica, dada a importância histórica do evento: Francisco é o primeiro papa a falar ao parlamento bicameral norte-americano em sessão conjunta.

O papa não perde a oportunidade de colocar diante de todos os representantes do povo americano as urgências e “feridas abertas” que atingem hoje milhares de irmãos e irmãs, nos EUA e fora deles, a partir de uma certeza: “Qualquer atividade política deve servir e promover o bem da pessoa humana e se basear no respeito pela dignidade de cada um”.

O papa indica, em seu discurso todo em inglês, os três nós que as atividades do Congresso devem desfazer para que os EUA “cresçam como nação”: a abolição da pena de morte, o fim do comércio de armas, o acolhimento de refugiados e suas famílias. “O trabalho legislativo é sempre baseado no cuidado das pessoas”, enfatiza o Santo Padre, recordando a figura de Moisés, cuja efígie está diante deles em meio às dos grandes legisladores norte-americanos que circundam o salão parlamentar. O patriarca de Israel oferece um bom resumo dos trabalhos do Congresso: “proteger, com os instrumentos da lei, a imagem e semelhança modeladas por Deus em cada rosto humano”.

O papa não entra em diálogo apenas com os membros do Capitólio, mas com todo o povo: “os muitos milhares de homens e mulheres que se esforçam diariamente para realizar uma honesta jornada de trabalho, para ganhar o pão de cada dia, para poupar algum dinheiro e, com um passo de cada vez, construir uma vida melhor para a sua família”. E também recorda os muitos idosos, “depósito de sabedoria forjada pela experiência”, e os jovens “que se empenham em realizar suas grandes e nobres aspirações, que não se desviam por propostas superficiais e que enfrentam situações difíceis, muitas vezes resultantes da imaturidade de muitos adultos”.

“Eu gostaria de dialogar com todos”, diz com candor o papa, e dialoga através da memória histórica do povo norte-americano, sintetizada nas figuras desses homens e mulheres que, “com todas as suas diferenças e seus limites, foram capazes, com trabalho duro e sacrifício pessoal, alguns à custa da própria vida, de construir um futuro melhor”.

O primeiro pensamento é para o presidente Lincoln, no 150º aniversário do seu assassinato. Seu espírito e suas lutas pela liberdade são uma admoestação para a “inquietante situação social e política no mundo de hoje”, que se tornou cenário de “conflitos violentos, ódios e atrocidades brutais, cometidos inclusive em nome de Deus e da religião (…) Sabemos que nenhuma religião é imune às formas de engano individual e de extremismo ideológico”, observa o papa, advertindo contra todas as formas de fundamentalismo, “tanto religioso quanto de qualquer outro tipo (…) É preciso um delicado equilíbrio para combater a violência perpetrada em nome de uma religião, de uma ideologia ou de um sistema econômico, salvaguardando-se, ao mesmo tempo, a liberdade religiosa, a liberdade intelectual e as liberdades individuais”.

Francisco exorciza depois outra tentação: “O reducionismo simplista que vê apenas bem ou mal, ou, se preferirem, apenas justos e pecadores”. Cuidado com a polarização do mundo, da sociedade, das pessoas, porque o resultado é a divisão: “Sabemos que, na tentativa de nos libertar do inimigo externo, podemos ser tentados a alimentar o inimigo interno”. Mas “imitar o ódio e a violência dos tiranos e dos assassinos é a melhor maneira de tomar o seu lugar”.

A nossa resposta, destaca o papa, deve ser “de esperança e de cura, de paz e justiça”. Para isso, temos de renovar e manter o mesmo “espírito de cooperação” que “promoveu tanto bem na história dos Estados Unidos”. Os desafios atuais são de tal “complexidade, gravidade e urgência” que não se podem deixar de empregar “os nossos recursos e os nossos talentos” para “apoiar-nos uns aos outros, com respeito pelas nossas diferenças e pelas nossas convicções de consciência”.

Essa cooperação é “um recurso poderoso na batalha para eliminar as novas formas globais de escravidão”, nascidas de “graves injustiças” que podem ser superadas apenas com uma política realmente “a serviço da pessoa humana”, e que, por conseguinte, não se submeta “ao serviço da economia e das finanças”.

O papa volta, em seguida, ao dia 7 de março de 1965, quando Martin Luther King guiou cerca de 25 mil manifestantes de Selma a Montgomery para pedir plenos direitos civis e políticos para os afro-americanos. “Aquele sonho continua a nos inspirar”, disse o bispo de Roma, alegrando-se de que “os Estados Unidos continuem a ser, para muitos, uma terra de sonhos que levam à ação, à participação, ao compromisso”, que “despertam o que há de mais profundo e verdadeiro na vida das pessoas” e as fazem “construir um futuro em liberdade”.

“Nós, os povos deste continente, não temos medo dos estrangeiros, porque muitos de nós fomos estrangeiros”, disse o papa, apresentando a si próprio como “filho de imigrantes”. Ele recorda os erros do passado, os direitos pisoteados “daqueles que estavam aqui muito antes de nós”, alerta para o presente, recomendando que “quando o estrangeiro entre nós nos interpela, não devemos repetir os pecados do passado” e exorta, para o futuro, a educar as novas gerações para que “não virem as costas ao seu próximo e a tudo o que nos rodeia”.

Especialmente neste momento em que o mundo enfrenta “uma crise de refugiados de proporções não vistas desde a Segunda Guerra Mundial”, uma realidade que “nos apresenta grandes desafios e muitas decisões difíceis”, diz o Santo Padre, encorajando a não se deixar “assustar” pelo número dessas massas em busca de melhores condições de vida, mas a “vê-las como pessoas, olhando para os seus rostos e ouvindo as suas histórias”, respondendo de “maneira justa, humana e fraterna”.

A “regra de ouro” é a de Jesus Cristo: “Faça aos outros o que você gostaria que lhe fizessem”. Esta convicção, diz o papa, “me levou, desde o início do meu ministério, a apoiar em vários níveis a abolição global da pena de morte. Estou convencido de que este é o melhor caminho, já que toda vida é sagrada, toda pessoa humana tem uma dignidade inalienável e a sociedade só pode se beneficiar da reabilitação daqueles que foram condenados por crimes”. Francisco repete o apelo dos bispos dos Estados Unidos pela abolição da pena de morte: “Eu não só os apoio, mas também ofereço apoio a todos aqueles que estão convencidos de que uma punição justa e necessária nunca deve descartar a dimensão da esperança e o objetivo da reabilitação”.

Ainda em temas sociais, Francisco menciona Dorothy Day, fundadora do Movimento das Trabalhadoras Católicos, e o seu compromisso com os mais fracos. O caminho da serva de Deus foi seguido em muitas partes do mundo. “Quanto já foi feito nestes primeiros anos do terceiro milênio para tirar as pessoas da pobreza extrema!”, exclama, encorajando a fazer ainda mais e a não perder, em tempos de crise e de dificuldade econômica, “o espírito de solidariedade global”. Não se esqueçam de “todas as pessoas que nos rodeiam, presas no círculo da pobreza”.

Parte deste grande esforço, naturalmente, está na criação e distribuição da riqueza, continua o pontífice, que, citando sua Laudato Si’, recorda que “o uso correto dos recursos naturais, a aplicação adequada da tecnologia e a capacidade de bem orientar o espírito empreendedor são elementos essenciais de uma economia que procura ser moderna, inclusiva e sustentável”. Ele convida a “mudar de rota” e “evitar os efeitos mais graves da degradação ambiental causada pela atividade humana”.

O olhar do papa se volta então ao início da Grande Guerra: um período que Bento XV chamou de “massacre inútil”, mas que viu o nascimento de outro “extraordinário americano”, Thomas Merton, “fonte de inspiração espiritual e guia para muitas pessoas”. Na perspectiva do diálogo, traçada pelo monge cisterciense, o papa louva “os esforços feitos nos últimos meses para tentar superar as diferenças históricas relacionadas com episódios dolorosos do passado”.

É uma referência ao embargo a Cuba: “Quando nações que estavam em desacordo retomam o caminho do diálogo, novas oportunidades se abrem para todos”. Isto exige “coragem e audácia”, o que não significa “irresponsabilidade”, porque “um bom líder político é aquele que, no interesse de todos, capta o momento com espírito de abertura e sentido prático”.

Estar a serviço do diálogo e da paz também significa “ser realmente determinados a reduzir e, no longo prazo, pôr fim aos muitos conflitos armados em todo o mundo”. E, com realismo cru, o Santo Padre pergunta: “Por que são vendidas armas mortais para aqueles que pretendem infligir sofrimentos incalculáveis a indivíduos e sociedades?”. Infelizmente, “a resposta, como todos sabemos, é simplesmente o dinheiro: o dinheiro encharcado de sangue, muitas vezes de sangue inocente. Diante deste silêncio vergonhoso e culpado, é nosso dever enfrentar o problema e parar o comércio de armas”.

Francisco acrescenta um último ponto: a família. “Como foi essencial a família na construção deste país!”, exclama, “e quanto ela ainda merece o nosso apoio e incentivo! Mas eu não posso esconder a minha preocupação com a família, que está ameaçada, talvez como nunca antes, de dentro e de fora. Relações fundamentais foram postas em discussão, bem como a própria base do matrimônio e da família. Eu só posso repropor a importância e, acima de tudo, a riqueza e a beleza da vida familiar”.

O papa chama especial atenção para os membros da família “mais vulneráveis”, os jovens, muitos deles “desorientados e sem meta, presos num labirinto sem esperança, marcado por violências, abusos e desespero. Os problemas deles são problemas nossos”, diz o papa, observando que a cultura de hoje quase empurra as novas gerações “a não formar uma família porque faltam possibilidades para o futuro”.

Desta forma, perde-se de vista que “uma nação só pode ser considerada grande quando defende a liberdade”, como fez Lincoln; quando “promove uma cultura que deixe as pessoas sonharem com plenos direitos para todos os seus irmãos e irmãs”, como Martin Luther King; quando “luta pela justiça e pela causa dos oprimidos”, como Dorothy Day e seu incansável trabalho, “fruto de uma fé que se torna diálogo e semeia a paz”, no estilo contemplativo de Thomas Merton.

O auspício do papa é que o espírito desses quatro filhos da América, “quatro indivíduos e quatro sonhos”, continue a “se desenvolver e crescer, de modo que o maior número possível de jovens possa herdar e habitar uma terra que inspirou tantas pessoas a sonharem”. “Deus abençoe a América!”, exclama em conclusão Francisco, provocando mais uma onda de longos e fortes aplausos.

 

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