A vocação ao amor e a missão da família

Juan de Dios Larrú

 

1. Introdução: a imagem do caminho

 

“Ensina-me, Senhor, os teus caminhos, para que siga na tua verdade” (Sal 86,11). Na Revelação bíblica, a metáfora do caminho foi frequentemente usada para designar a história da salvação do povo de Israel. Também na tradição grega, uma antiga doutrina, denominada “dos dois caminhos”, que remonta à famosa fábula da opção de Hércules e que tem origem, segundo Xenofonte, no sofista Pródico de Ceos,[1] recomendada e embelezada por Sócrates, no seu diálogo com Aristipo, mostra a vida como um caminho, que se deve escolher e seguir. Segundo essa fábula, Hércules, depois da infância, retirou-se para o deserto e, tendo-se sentado, ponderava que caminho devia tomar na vida, diante de duas mulheres que tentavam atraí-lo, uma para a senda do vício e a outra para o caminho da virtude.

Perante esta impostação em forma de dilema, mais própria da filosofia antiga que da Revelação, o caminho de libertação, aberto pela ação de Javé no Antigo Testamento, não dá espaço a dúvidas, e tem um claro caráter de promessa. O êxodo do povo de Israel está intrinsecamente unido à promessa de Deus, promessa de uma nova terra e de uma nova família. O caminho designa, assim, a vontade salvífica de Deus, que o povo pode acolher, fazendo-a própria e pondo-se a caminho. O êxodo adquire, assim, uma dupla vertente: por um lado, é a história de um povo conduzido por Deus, no meio da fé e da incerteza dos homens; por outro, é a história de uma promessa de plenitude, de que em parte já se vai beneficiando no próprio decorrer da caminhada.

A novidade do Novo Testamento é que Cristo afirma que Ele mesmo é o caminho para o Pai (Jo 14,6). Também a vocação dos discípulos de Jesus, concentrada na ordem perentória “segue-me!”, não indica uma meta, mas um caminho a percorrer atrás do Mestre. Novamente aparece com clareza a iniciativa de Deus, proveniente, neste caso, da comunhão de Jesus com o Pai na oração filial do Filho.[2] Assim, o chamamento de Cristo surge como um convite a partilhar com Ele uma vida. Por isso, a vocação do homem não é para desempenhar uma função, mas para viver com o Filho, para descobrir e reconhecer a própria identidade filial, para “ser filhos no Filho”. Além disso, a vocação que nasce de uma chamamento prévio concede um espaço à liberdade do homem, para que responda dinamicamente, gerando uma história, que, por ser humana, tem de processar-se no espaço e no tempo, tem de ter um caráter narrativo. Daí também que a liberdade humana seja essencialmente filial.

 

 

2. O dom da filiação

 

O anúncio da chegada de um filho é um acontecimento maravilhoso, portador de uma promessa para cada família humana. Trata-se da maravilha que a vinda a este mundo de uma radical novidade originariamente suscita. O maravilhar-se era já para Aristóteles o início de qualquer conhecimento. A criança traz em si uma capacidade inata de se maravilhar, que é o verdadeiro motor da sua aprendizagem.[3]

Com este assombrar-se e maravilhar-se perante o dom de uma nova vida humana, aparece no horizonte uma alegria e um gozo inefáveis pelo nascimento de um novo filho. Como diz a encíclica Evangelium vitae: “o nascimento de um menino é proclamado como feliz notícia: ‘Anuncio-vos uma grande alegria, que o será para todo o povo: Hoje, na cidade de David, nasceu-vos um Salvador, que é o Messias Senhor’ (Lc 2,10-11)… O nascimento do Salvador faz irradiar essa ‘grande alegria’; mas, no Natal, manifesta-se também o sentido pleno de todo o nascimento humano, pelo que a alegria messiânica se revela fundamento e plenitude da alegria por cada criança que nasce (cf. Jo 16,21)”.[4] À maravilha e assombro pelo acontecimento de um novo filho associam-se, assim, uma alegria e um gozo indescritíveis, que têm a sua origem e fundamento último na alegria do Salvador, que traz consigo a vida definitiva e duradoura, a vida eterna.

Se Adão, que não tinha pai humano, sentiu-se frágil para fundar uma comunhão, Cristo quis revelar plenamente a paternidade divina com a sua filiação: “Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher e sujeito à Lei, para resgatar os que estavam sujeitos à Lei, e nos tornar seus filhos adotivos. E porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: ‘Abá, Pai!’ Assim, já não és escravo, mas filho. E, se filho, também és herdeiro, por graça de Deus” (Ga 4,4-7). Deste modo, a partir do acontecimento da Encarnação do Verbo, a filiação divina e a filiação humana ficaram inseparavelmente vinculadas para sempre.

O filho, já desde o mistério da criação, faz parte da bênção originária dada por Deus e unida à fecundidade da relação homem-mulher (Gn 1,28). Com a Encarnação do Verbo, essa bênção converteu-se em transbordante realização da plenitude da entrega.

Ser filho é a primeira experiência de amor para cada pessoa, experiência que está na origem do que cada um é. Todo o homem é filho. Na perspetiva do amor, ser filho é sinónimo de ser amado. O nascimento de cada ser humano inaugura uma novidade no ser, possuidora de uma densidade inescrutável. A condição filial é a verdade ontológica mais profunda de cada homem. Esta experiência marca toda a existência da pessoa. A filiação é uma experiência primigénia, constitutiva, em que se manifesta uma radical recetividade, uma vez que o filho é quem recebe o ser, sendo constitutivamente destinatário do amor.

Esta recetividade, porém, não é estática, mas profundamente dinâmica. Daí que a passividade da experiência da filiação esteja inseparavelmente unida à atividade de receber dinamicamente o dom de ser filho. Assim, passividade e atividade aparecem numa constitutiva circularidade hermenêutica. Na consciência está inscrita esta estrutura circular de atividade e passividade, que não são reificadas e, portanto, opostas, mas que devem ser compreendidas uma através da outra.[5]

Nesse sentido, não há nenhuma pessoa que somente dê nem ninguém que só receba, mas em todas está presente, em maior ou menor medida, a lógica do dar e receber. Por outras palavras, o dom da filiação institui simultaneamente a tarefa de aprender a ser filho, recebendo dinamicamente o amor originário. A temporalidade do dom faz com que o tempo seja possibilidade, ocasião propícia (kairós), para crescer no amor. Ser filho não pode ser simplesmente uma condição, como se fosse uma etiqueta, registada e constatada só passivamente, mas é uma tarefa permanente para cada um.

 

2.1. O significado da geração humana

 

Gerar é, antes de mais, um ato humano, em que se institui uma relação entre quem dá e quem recebe através da mediação do que se dá. Neste caso, o que se dá é o outro a si mesmo, precisamente porque dá-se a vida. E não só no sentido biológico: a geração é entregar ao outro o início da sua história, num ato que é uma promessa: “estaremos, podes contar connosco!”. A primeira relação que os pais criam entre si é, portanto, a relação com um terceiro, o filho. Gerar significa introduzir no mundo e dar à luz um outro, o próprio filho.

O evento de ser gerado, como acontecimento, é constitutivo da identidade pessoal. A relação filial, do ponto de vista fenomenológico, é o acesso paradigmático para compreender a verdade da condição humana. Gerar e ser gerado encontram-se numa mesma e unitária lógica, de modo que não podem ser separados.

A originária experiência da filiação revela-nos que a nossa existência provém de um amor que nos precede. O amor originário é um amor criador, um amor que nos faz ser, nos faz nascer e nos mantém na vida. Também a relação constitutiva entre Deus e o homem é um ato de amor pessoal. Nesse sentido, como diz a Gaudium et spes, o homem é a única criatura que Deus amou por si mesma.[6] O mistério da criação, que atinge o seu vértice na criação do homem como homem e mulher, tem o seu fundamento na metafísica do amor.

O primeiro amor que toda a pessoa experimenta é o dos pais. Como muito bem diz Virgílio, “a criança começa a conhecer a mãe no sorriso”.[7] O sorriso materno torna-se, assim, uma mensagem quente de acolhimento, uma constante confirmação de que existir é um bem imenso. O amor materno concentrado no sorriso é acolhido pela criança de tal modo que ela compreende muito bem que nele pode repousar tranquila e serena. Trata-se da confirmação silenciosa, mas eloquente, de que a vida é um bem, de que a vida é um dom.

Assim, na relação com a mãe, a criança toma consciência da sua existência. O filho reconhece a sua individualidade no olhar amoroso dos pais, que permanecem como a raiz e o fundamento para toda a vida. Os pais garantem o crescimento, acompanham-no e promovem-no.

Esta confiança fundante permitirá que a criança cresça na certeza de que o mundo que a rodeia não constitui para ela uma ameaça inquietadora, mas uma oportunidade de crescimento na relação com o mesmo. Ser filho significa permanecer nessa relação de amor, que sustenta a existência humana e dá-lhe sentido e grandeza.

Como observou von Balthasar, “a criança não ‘reflete’ se deve responder ao sorriso estimulante da mãe com amor ou desamor, pois, como o sol faz crescer a erva, o amor suscita amor”.[8] Esta experiência reflexa da criança com a mãe constitui também um caminho de acesso à realidade de Deus. Do tu humano abre-se um caminho para o tu divino e, assim, a relação com quem nos gerou é como que a peugada da Origem. O início da nossa vida alude e remete para a Origem, com o mistério do Princípio. Assim, a consciência da filiação tem uma qualidade constitutivamente religiosa, porque remete para uma transcendência. Portanto, existo porque os meus pais se amaram, mas o homem não é fruto só do amor dos seus pais, mas também de um explícito ato de amor de Deus.

Nenhum de nós veio à existência por acaso ou por necessidade. Cada um foi querido imediatamente por Deus. O Criador amou-me e chamou-me pelo meu nome (Is 43,1). O nome dá a possibilidade de dirigir-se a alguém, chamá-lo, estabelecer uma relação interpessoal com ele. O chamamento divino de cada homem faz com que ele seja singular e irrepetível e, ao mesmo tempo, um ser essencialmente recetivo.

Esta precedência de um amor que suscita o nosso mostra que o amor é sempre resposta a um outro, originário, gratuito, incondicional, um primeiro amor, que não é o que os meus pais me têm, nem mesmo o que ambos têm entre si. Apesar disso, a comunhão conjugal é a fonte primigénia, onde o filho intui que pode saciar a sua sede de ser amado.

Fomos amados, fomos escolhidos e queridos por um amor que nos precede. Esse amor originário é um dom incondicional. A incondicionalidade do dom da vida é fundamento da existência. Esta ausência de restrições e requisitos permite-nos penetrar na gratuidade do dom da filiação. Ser filho não é uma experiência eletiva, mas uma experiência gratuita e irrevogável. A incondicionalidade do dom e a irrevogabilidade do chamamento à existência são as caraterísticas próprias da filiação.

Ser filho significa, portanto, ser amado. A essência da filiação consiste em aprender a reconhecer o que nos foi dado incondicionalmente. Esta incondicionalidade significa que o amor que nos precede não é um amor fragmentário, um amor à prova, um amor seletivo, mas um amor que não precisa de nenhuma condição nem depende das mutáveis circunstâncias que possam advir. Esta ausência de restrições ou requisitos prévios leva à descoberta de como o amor está na origem da dinâmica do dom. A gratuidade é uma nota característica da doação. Na intenção de quem dá está sempre incluída a aceitação do dom, pelo que esta não é algo de exterior à ação de dar.

Na origem da filiação encontra-se a experiência natalícia. Como diz a filósofa judia Hannah Arendt, os homens não são mortais, mas “natais”, uma vez que não vieram ao mundo para morrer mas para começar. Nesse sentido, o homem não é um ser para a morte, mas um ser a partir da vida. O acontecimento decisivo para o homem é a natalidade, o ter entrado no mundo pelo nascimento. A natalidade é a condição ontológica da ação como início de algo novo.

 

2.2. As virtudes da filiação

 

Diante da gratuidade do dom da vida, a forma de reconhecer esse dom é acolhê-lo com gratidão.[9] Assim, uma cultura da vida tem de ser concebida como cultura do agradecimento, onde as pessoas aprendem a receber as demais pessoas, gerando um âmbito de comunhão.[10]

A gratidão é uma resposta primária e fundamental perante o dom.[11] Para Arendt, pensar é agradecer, pois o agradecimento é o princípio inicial da filosofia.[12] Assim, Arendt observa com lucidez como o nosso pensamento nasce de algo recebido de outros, que nos precederam e que aceitamos à luz de uma fé. É uma primeira resposta que nos ajuda a estimar o benefício ou favor que nos fizeram ou quiseram fazer, e a corresponder-lhe de alguma maneira. Deste modo, o exercício da gratidão é uma permanente renovação da memória, que nos abre à verdade da promessa. A gratidão é o caminho mais profundo da memória. Nesse sentido, como afirma Paul Valéry, “Nunca se perde a memória. A lembrança é indelével. O que se perde é o caminho para a lembrança”.[13] Quando o agradecimento é intenso, transforma-se em força de obra, em motor de ações excelentes. Por isso, agradecer é dispor-se a receber uma promessa maior, a receber o dom com maior plenitude.

Ao educar à gratidão pela existência recebida, a família põe o homem em contacto com a Fonte originária do bem, com o Pai comum “de quem toda a família nos Céus e na terra toma o nome” (Ef 3,14-15). A vida da família abre-nos assim a Deus, orienta-nos para o horizonte último, para o que torna possível a vida em sociedade.

O agradecimento é também a experiência que nos torna conscientes do que recebemos: “Que tens tu que não tenhas recebido?” (1Co 4,7). O homem é a criatura, que, contemplando o dom de Deus, pode cruzar a soleira do assombro,[14] e converter o assombro em ação de graças e louvor. Este afeto pelo Princípio, pela Origem da nossa vida, chama-se, desde a antiguidade, piedade filial. A piedade é o coração do quarto mandamento: “Honra teu pai e tua mãe”. Nele, a gratidão com os pais é reflexo da adoração a Deus.

A gratidão está também estreitamente unida à virtude da humildade, pois quem agradece tem consciência de ser um mendigo diante de Deus e dos demais. Juntamente com esta, uma outra virtude essencialmente filial é a obediência, que procede da caridade e que está ligada à capacidade de escuta do filho. Como diz o Catecismo da Igreja Católica, “obedecer (ob-audire) na fé é submeter-se livremente à palavra escutada, por a sua verdade ser garantida por Deus, que é a própria Verdade”.[15] A obediência como virtude filial funda-se na experiência do amor recebido, daí a sua estreita relação com a docilidade, com o desejo de aprender e de se deixar ensinar. O filho dócil aos pais é conduzido, no caminho da vida, à maturidade do amor.

A experiência da paternidade e da filiação instaura, em condições normais, uma confiança básica entre os pais e o filho. Tal confiança é fonte de ânimo, alento e vigor para o agir do filho. Sobre ela forma-se a audácia filial, essa ousadia e atrevimento que permite abrir caminho na vida, ir crescendo e progredindo no amor recebido. A audácia filial provoca um pedido do filho aos pais. Assim, pedir e dar graças são as duas ações essenciais, expressas nas palavras “por favor” e “obrigado” (gracias), sobre as quais se funda e cresce a capacidade de reciprocidade humana.

Este amor originário mergulha as raízes numa fonte escondida, no mistério do Princípio, no mistério de Deus criador. É, portanto, a força vivificante do amor divino que faz ser. Daí que a criação seja a primeira revelação do amor de Deus. Graças a ela, é-nos revelado algo de maravilhoso. A vocação ao amor tem a sua origem mais recôndita numa comunhão de pessoas, que, embora permanecendo à sombra do mistério, é capaz de despertar o homem para uma promessa.[16]

A partir deste amor originário, cada pessoa é chamada a integrar a pluralidade de dimensões que compõem a sua rica dimensão humana. A tarefa da vocação consiste nesta unificação progressiva, que requer tempo, docilidade, paciência.[17] Como diz Mounier: “Esta unificação progressiva de todos os meus atos e, por isso, de todas as minhas personagens e de todos os meus estados, é o ato próprio da pessoa. Não é uma unificação sistemática e abstrata, é a descoberta progressiva de um princípio espiritual de vida, que não se reduz ao que eu integro, mas que o salva, o realiza recriando-o a partir do interior. Este princípio vivo é o que, em cada pessoa, chamamos sua vocação”.[18]

 

 

3. A fraternidade: uma filiação partilhada[19]

 

“Vós, porém, não vos deixeis tratar por Mestres, que um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos” (Mt 23,8). Este versículo do Evangelho de São Mateus exprime a novidade da fraternidade cristã, que se funda na unicidade da filiação divina em Cristo.

As palavras “irmão” e “fraternidade” têm uma história antiga como a humanidade, uma vez que designam uma experiência primordial dos homens. No mundo grego, a fraternidade relacionava-se com a consanguinidade. Para Platão, o irmão é o compatriota. Xenofonte relaciona a fraternidade com o amigo. Mais tarde, na época helenista, o desmoronamento da polis levou inevitavelmente a novas ideias sobre a comunidade, nomeadamente de cariz religioso. À unificação política do mundo corresponde o cosmopolitismo estoico, que descobre a unidade do cosmo e do homem. A todo o género humano corresponde, portanto, o mesmo e único ethos fundamental da fraternidade.

No Antigo Testamento, a fraternidade não estava baseada simplesmente na comum procedência segundo a carne, mas na comum escolha feita por Deus. O primeiro plano não é ocupado pela mãe particular, mas pelo pai comum, Javé. Israel tem como Deus nacional o Deus universal. Existe porém uma paternidade especial de Deus com Israel, pois sendo Deus o pai de todos os povos por criação, de Israel também o é por escolha.

Em passagens chaves da história da salvação aparecem pares de irmãos, cuja situação de predileção ou reprovação tem respetivamente uma peculiar vinculação. São os casos de Caim-Abel, Ismael-Isaac e Esaú-Jacob. Nestes pares, podemos ver que a história da salvação é uma história de fraternidade, embora não isenta de conflitos. Esta teologia dos dois irmãos adquire todo o seu sentido sobretudo no Novo Testamento. A difícil relação fraterna que aparece na história da salvação é tomada por Jesus, que chama dois pares de irmãos (André e Pedro, Tiago e João) para serem seus primeiros discípulos. Com eles estabelecerá uma nova comunhão, que não se funda na primogenitura – ver quem é o maior –, mas no serviço e entrega, segundo o texto evangélico que sugere: “…quem entre vós quiser ser o primeiro seja o vosso servo” (Mc 10,43-44). A fraternidade entre os discípulos provém da unidade do chamamento à vocação, que brota da oração de Cristo ao Pai. Neste sentido, a filiação em Cristo funda a fraternidade em Cristo. A união com Ele estabelece uma singularíssima relação de todos os crentes com o Pai e uma original relação recíproca. Apercebemo-nos de sermos irmãos porque temos um só Pai.[20] São Paulo, através da sua teologia do corpo de Cristo, insiste em que a raiz da unidade do único corpo formado pelos cristãos é a consequência lógica da união de cada um dos membros com Cristo.[21]

Liberté, égalité, fraternité são as palavras que a Revolução Francesa grava nos seus estandartes. É verdade que alguns autores reconheceram que, em comparação com a liberdade e a igualdade, a ideia de fraternidade teve menos relevância na teoria da democracia.[22] Em todo o caso, a igualdade e a fraternidade na sua versão de cidadania converteram-se em direitos de todos os homens como programa político e revolucionário. Como afirma o Papa Francisco, na sua encíclica Lumen fidei, “na Idade Moderna, procurou-se construir a fraternidade universal entre os homens, baseando-se na sua igualdade; mas, pouco a pouco, fomos compreendendo que esta fraternidade, privada do referimento a um Pai comum como seu fundamento último, não consegue subsistir”.[23]

Depois do Iluminismo, o caminho leva diretamente ao conceito marxista de fraternidade. Neste. prefere-se a palavra “camarada”, que etimologicamente vem de “câmara” (dormir num mesmo aposento). Desaparece assim e definitivamente a ideia da paternidade comum de Deus. O socialismo, em oposição às ideias do Iluminismo, é o regresso decidido à distinção dos âmbitos éticos. “Abaixo a irmandade uniforme de todos os homens!”. A humanidade está dividida em dois grupos antitéticos: capital e proletariado. A irmandade com uns inclui, portanto, a inimizade com os outros.

À diferença da fraternidade puramente intramundana do marxismo, a fraternidade cristã funda-se, antes de mais, na paternidade de Deus.[24] Se a fraternidade segundo o Iluminismo e o estoicismo se baseia na natureza, a fraternidade cristã tem como fundamento a fé em Deus, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que tem o seu pórtico no Batismo. Por conseguinte, torna-se para hoje extremamente necessário redescobrir a raiz da fraternidade, pois, como observou Gibellini: “A fraternidade cristã não pode ser reduzida a filantropia nem é semelhante ao cosmopolitismo estoico ou iluminista, mas é expressão de verdadeiro universalismo, posto ao serviço de todos”.[25]

Nesse sentido, Jesus usa o termo irmão com três significados distintos. Em primeiro lugar, assume o uso judeu do Antigo Testamento (Mt 5,21s). Um segundo grupo assume o conceito especial de irmão, utilizado pelos rabinos, que gostavam de chamar “irmãos” os seus discípulos (Lc 22,31s; Mt 28,10; Jo 20,17b). O mestre “rabí” chama os seus discípulos “irmãos”. O terceiro grupo é um uso tipicamente cristão (Mc 3,31-35). No cristianismo o parentesco do sangre é superado pelo parentesco espiritual, que é uma categoria mais profunda. A submissão comum à vontade de Deus cria esse profundíssimo parentesco.

A parábola de Jesus sobre o filho pródigo talvez se pudesse chamar “parábola dos dois irmãos”,[26] dada a situação criada pela parábola, que distingue claramente dois grupos: os publicanos e os pecadores, por um lado, e os fariseus e os letrados, por outro.[27]

No discurso escatológico (Mt 25,31-46), Mateus mostra claramente o critério do Rei no julgamento, ao separar os da sua direita dos da sua esquerda: “Em verdade vos digo quantas vezes o fizestes a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim o fizestes” (Mt 25,40). O prémio ou castigo eterno fundam-se nesta relação fraterna com Cristo, que se estenderá a todos os que tenham com Ele essa vinculação. A enorme importância destas palavras radica-se no facto de exprimirem uma universalidade, que antes do Cristianismo era impensável.

Para São Paulo, é a ação do Espírito Santo que nos vai tornando filhos de Deus e irmãos de Cristo, que recebe o título de “primogénito de muitos irmãos” (Rom 8,14-17.29). Na Carta aos Hebreus, insiste-se nesta comum origem do santificador e santificados; é a razão pela qual “não se envergonha de chamá-los irmãos” (Heb 2,11). Assim se aprofunda o conceito de paternidade a partir de uma perspetiva trinitária: a paternidade de Deus refere-se em primeiro lugar ao Filho, a Cristo, e por Ele a nós. Com estes elementos elabora-se a estrutura teológica da fraternidade cristã.

Tanto a parábola mencionada como a doutrina dos dois povos, que São Paulo desenvolve em Rom 9-11, estabelecem uma ousada inversão: o repúdio acaba por levar a uma escolha, com o repudiado a ser escolhido precisamente no seu repúdio. Do mesmo modo como Cristo, o eleito, Se tornou para nós, através de um intercâmbio sagrado, o repudiado, assim o escolhido deverá estar sempre disposto a ser representativamente o repudiado. Um está para o outro. A escolha é sempre escolha para o outro.

Para São João, tanto no seu Evangelho como nas suas cartas, o critério da fraternidade é a fé. Esta fé, que atua sempre na caridade, é muito concreta. Daí que o apóstolo constantemente se refira ao amor fraterno dentro da própria comunidade. Nesse sentido, é sintomático que nunca fale do amor aos homens em geral. Assim, põe-se em relevo como a irmandade cria um vínculo real, embora sempre limitado, ao passo que a humanidade universal fica em segundo plano, para evitar o risco que se converta num ideal vazio, tornado formal e retórico.

A paternidade de Deus confere à fraternidade cristã a sua verdadeira solidez. Deste modo, a fraternidade cristã funda-se na fé trinitária, que nos assegura que, em Cristo, somos realmente filhos do Pai do Céu e irmãos uns dos outros pelo Espírito Santo que recebemos.

A experiência da filiação enriquece-se, portanto, com a experiência da fraternidade. Como o ser filho, também o ser irmão é uma experiência de aprender a receber, pois não escolhemos os nossos irmãos, mas foram-nos dados como um dom. Com essa experiência, vemos que não somos filhos únicos, que o amor dos nossos pais não se limita exclusivamente a nós, mas que os meus irmãos também dele participam. A fraternidade faz-nos descobrir que o dom da filiação é um dom partilhado com outros. Receber o amor dos pais supõe, portanto, aprender também a intercambiar o amor com os irmãos. Aprender a receber a fé implica, portanto, aprender a partilhar a fé. A experiência da fraternidade está ligada também à aprendizagem da virtude da justiça, inseparável da caridade fraterna, que a enriquece. A fraternidade liberta-nos, por sua vez, da uniformidade indiferenciada e da diferença que exclui e que chega a ignorar a origem e destino comuns. A fraternidade promove também a virtude da generosidade: dar e partilhar o próprio com magnanimidade.

Como mostra a parábola do filho pródigo, a inveja é o pecado contra a fraternidade. É um dos sete pecados capitais, pois implica uma cegueira em relação ao bem, que é o irmão. Quem não reconhece a comunicabilidade do bem, torna-se incapaz de reconhecer que se recebeu o mesmo dom, e termina na negação da fraternidade. “Sou, porventura, o guarda do meu irmão?” (Gn 4,9). O Catecismo da Igreja Católica define a inveja como sendo “a tristeza que se experimenta perante o bem alheio e o desejo imoderado de se apropriar dele” (CEC 2553). “O batizado combate a inveja com a caridade, a humildade e o abandono à divina providência” (CEC 2554).

Toda a iniciação cristã – com o itinerário dos seus três sacramentos: Batismo, Confirmação e Eucaristia (juntamente com a Penitência) – tem que se orientar para o crescimento da fé, através de uma receção, cada vez mais profunda e consciente, da mesma. A celebração destes sacramentos, sendo profundamente familiar, fundamenta e restaura a fraternidade cristã.

 

 

4. A esponsalidade e o dom de si

 

A verdade completa do amor não se reduz unicamente à sua receção; é preciso que o filho perceba que deve avançar, aprendendo um novo modo de receber o amor: entregar-se aos outros. Pois não é só o receber que nos enriquece, mas também o dar. É nesta dinâmica comunicativa de dar o que se recebe que se encontra a charneira entre as experiências da filiação e a esponsalidade. O amor filial é chamado, assim, a crescer e a amadurecer até gerar o amor esponsal.

 

4.1. A especificidade do mútuo dom de si

 

A realidade do dom de si contém um paradoxo: “quem procurar salvar a sua vida há de perdê-la e quem a perder, há de salvá-la” (Lc 17,33). Como diz o Concílio Vaticano II: “O homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode realizar-se plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo aos outros”.[28] Dar-se é o caminho para ter-se. O dom de si mesmo é um ato em que a pessoa entrega não algo de seu, mas a sua própria vida, a sua própria pessoa. É o maior ato de liberdade da pessoa. O dom de si define-se necessariamente como dom da própria liberdade.[29]

O dom de si pede um destinatário pessoal. Só uma pessoa pode-se entregar plenamente a outra pessoa, pois só uma pessoa é capaz de receber esta entrega total e irrevogável do ser pessoal.

No contexto cultural em que nos movemos, há que reconhecer que este é um passo particularmente dramático. De facto, o modelo “adolescêntrico”, que culturalmente se impõe, tende a infantilizar os jovens e a impedir que progridam na sua maturidade.[30] Os jovens sentem-se pouco atraídos pelos adultos. Esta fraca atração faz com que posponham e adiem indefinidamente as decisões que comportam a entrada na vida adulta.[31] O jovem tem que assumir a responsabilidade da fé; tem de ser ele mesmo, e não os pais, os professores e os amigos ou o ambiente a responder.

A dificuldade maior, dentro do que se poderia chamar pansexualismo reinante,[32] está em perceber e descobrir o significado esponsal do corpo. A vocação ao amor está inscrita na diferença sexual. Diferença não é sinónimo de discriminação, como pretende a ideologia do género, que, a partir do postulado da igualdade radical, exige, de consequência, uma “neutralidade” da parte da sociedade para não se impor um género sobre o outro.[33]

É precisamente nas relações interpessoais que cada pessoa descobre a sua vocação à comunhão. Para poder reconhecer este significado esponsal do corpo e a sua capacidade de exprimir o amor, é necessária uma progressiva e adequada educação da afetividade como sendo o dinamismo que nos dispõe a ir descobrindo a própria vocação ao dom total de si.[34]

O medo do insucesso, a incerteza de não conseguir ser fiel a uma promessa, superam-se olhando para Cristo, abrindo o coração à sua ação redentora, que vem ao encontro de cada um para vencer o medo e revelar-nos a plenitude de um amor, que só se experimenta pondo em jogo a liberdade e a vida inteira. A Eucaristia, sacramento do Corpo de Cristo, é o santuário, onde cada homem pode descobrir o mais profundo significado esponsal do corpo.

Este amor esponsal não elimina nem substitui o amor filial, mas fortalece-o com a chegada de um elemento novo. Ser esposo é mais do que ser filho. Esta progressão consiste em que o amor, à medida que se dirige a outra pessoa, abre-se à dimensão da doação. Trata-se da singularidade do dom de si, da entrega total e exclusiva a outra pessoa. A vocação humana realiza-se, portanto, num amor de doação, um amor que termina sempre numa pessoa, pois é ela o fim de todo o ato de amor.

Este amor esponsal tem dois modos fundamentais de ser vivido: o amor conjugal e o amor virginal. O amor conjugal caracteriza-se pela entrega mútua dos esposos. O matrimónio é, portanto, a vocação a um amor peculiar: o amor conjugal. Este recíproco dom de si faz nascer uma comunhão, que não se reduz a um acordo de liberdades ou a um contrato naquilo em que a liberdade se empenha só sob certas condições. A comunhão conjugal é a descoberta de que a liberdade de um cônjuge está empenhada na liberdade do outro, e vice-versa; é o feliz achado de que a mesma comunhão é o fim da liberdade.

O amor de comunhão é um amor recíproco. Não se trata de uma mera soma de dois atos de entrega, mas de uma realidade que supera ambos. Este amor conjugal tem sempre uma mediação objetiva. O bem próprio que une os esposos é a união na carne (Gn 2,24). Este ser “uma só carne” não se reduz unicamente à união carnal, mas refere-se ao conjunto de dinamismos tendenciais, afetivos e de convivência, que configuram a comunhão conjugal. Esta comunhão é algo de vivo e, por isso, permanentemente dinâmico, chamado a crescer. Crescer na comunhão conjugal é a tarefa permanente dos esposos. Fazem-no através das ações que vão realizando, que os fazem crescer em intimidade, numa maior riqueza de vivências afetivas (mais intensas ou mais afinadas), num crescente conhecimento mútuo e aceitação do outro, no partilhar mais profundamente o bem que os une. É o Espírito que vai atuando no coração dos esposos, para que cresçam na sua vocação conjugal. Como diz o Diretório da pastoral familiar da Conferência episcopal espanhola: “O Espírito introduz-nos ‘na profundidade de Deus’ e faz com que descubramos uma nova dimensão deste Amor esponsal: o grande mistério da nova aliança de Cristo com a Igreja”.[35]

 

4.2. As virtudes da esponsalidade

 

Se a experiência da filiação estava unida à gratidão de reconhecer o recebido, a experiência da esponsalidade está estreitamente vinculada à fidelidade.[36] Ser fiel supõe perseverar na palavra de amor, que se dá a alguém;[37] não se reduz simplesmente a aguentar, mas requer a criatividade de um amor que se renova no tempo, convertendo-o numa história de amor. É o que alguns filósofos chamaram fidelidade “criadora”.[38] A crise de fidelidade que vivemos está ligada a uma conceção romântica do amor, que erroneamente identifica a verdade do amor com a intensidade emotiva com que se o experimenta. O critério que parece exclusivo para valorizar o amor é a sinceridade com os próprios sentimentos. Há, portanto, que ajudar as pessoas a integrarem a sua afetividade, a descobrirem que a sexualidade não está em função exclusiva do prazer que produz, mas que são chamadas a uma maior plenitude de vida.[39]

 

 

5. A fecundidade do dom de si: o dom da paternidade

 

Neste constante crescimento, os esposos vão descobrindo a dimensão da fecundidade do seu amor, que os leva a viver cada vez mais intensamente a experiência da paternidade. Ou seja, o dom de si dos esposos não se fecha na sua mútua doação, mas abre-se à possibilidade de uma comunicação totalmente original: a procriação da vida. A vida em comunhão dos esposos está aberta a acolher no seu próprio amor a outra pessoa, com quem comunica a própria riqueza de vida contida no amor. A dinâmica unitiva do amor conjugal transborda incessantemente na lógica da superabundância do dom. Assim, os filhos, fruto do amor conjugal, reforçam constantemente a mútua entrega dos esposos.

 

5.1. O nexo esponsalidade-paternidade

 

Se entre as experiências da filiação e da esponsalidade existe uma recíproca escolha pessoal dos cônjuges, entre a experiência da esponsalidade e da paternidade já não existe essa escolha direta, pois ser esposos já implica ser potencialmente pais, sem que para isso seja necessário algo mais que a dinâmica própria do amor esponsal, que inclui sempre um dual significado unitivo-procriador. Não é legítimo reduzir o significado a uma mera função,[40] pois a fecundidade é uma nota característica essencial do amor conjugal, que põe em realce a intrínseca inseparabilidade entre matrimónio e família.

Os esposos desejam ser pais como uma promessa guardada no seu mútuo amor. Não basta desejar um filho para que ter um filho seja algo de bom. A paternidade que se procura a si mesma de modo absoluto autodestrói-se, porque ser pais é um dom que se acolhe no dom de si esponsal. Por isso, desejar um filho é sempre desejar receber e acolher um filho. Os pais são-no para sempre. A irrevogabilidade é uma nota característica da paternidade. Esta, portanto, não é um experimentar, mas uma experiência única, que transforma os pais e introduz constantemente no mundo a verdadeira novidade.

É evidente que a paternidade e a maternidade não se limitam nem a uma mera função social nem a um fenómeno puramente biológico, mas são uma experiência profundamente pessoal dos cônjuges, na medida em que vão crescendo no seu amor e colaboram com uma ação de Deus; uma realidade religiosa por excelência: “Gerei um homem com o auxílio do Senhor!” (Gn 4,1). Os filhos, fruto do amor esponsal dos pais, são o dom por excelência do matrimónio. São, passe a expressão, o dom do dom de si dos esposos. A atual dificuldade da paternidade está ligada à recusa social da autoridade, que se esconde numa pretensa autonomia ou numa hermenêutica da consciência.

 

5.2. O eclipse da paternidade e a crise do gerar

 

A perca de esperança da nossa cultura niilista é a raiz do eclipse da paternidade, que invade o mundo ocidental. A abundante bibliografia em matéria,[41] pode dividir-se, do ponto de vista psicológico, em dois ramos: os que seguem Jung e os que seguem Lacan, retomando a questão do “nome do pai”.[42] Para os psicólogos, os filhos precisam da autoridade paterna para dela herdarem um desejo e configurarem verdadeiros desejos, sem cair na obsessão da necessidade ou na saturação do desejo. Hoje, o pai está mais presente na vida familiar, em casa e nas tarefas domésticas, mas a densidade simbólica da figura paterna, em boa parte, evaporou. Como constata a fenomenologia, o papel do pai na condução da família, nomeadamente no campo da educação, é deficitário. O desaparecimento de ritos e mitos, construídos à volta da imagem do estilo paterno, foi acompanhado de um menor esforço de civilização e de sentido da lei. Na sociedade atual, que propõe um modelo paritário, o pai adota com frequência esse modelo de relação com os filhos. Nesse sentido, um dos traços característicos da experiência atual da paternidade é a assunção de funções de apoio afetivo em relação aos filhos (caregiver). Alguns autores apontam para o risco de uma “maternização” da paternidade, que dificulta a sua valência normativa.[43] O que, em tempos, se chamava pátria potestade, despojada da sua legitimação sagrada, é hoje uma figura retórica relacionada com uma sociedade autoritária. Verifica-se, assim, um obscurecimento do vínculo circular entre lei, autoridade e liberdade individual, que tem repercussões no âmbito educativo.

Juntamente com o eclipse da paternidade, a crise do gerar é um fenómeno deveras preocupante, sobretudo nos países ocidentais. Não se trata de uma crise conjuntural, mas constata-se que mudou a ideia que se tinha de filho, que hoje é sobretudo o “filho do desejo”, como sublinhou M. Gauchet.[44] Trata-se de uma verdadeira mudança antropológica, pois, se há não muito tempo, a família gerava o filho, agora é o filho que parece gerar a família. O desejo de ter um filho é algo de muito positivo, mas, quando se o absolutiza, faz-se do filho um objeto de catálogo. O mesmo facto, quer da falta de vontade quer da incapacidade de enfrentar o gerar humano, revela a enorme fraqueza espiritual e moral em que se vive. A explicação filosófica e teológica de cariz naturalista, em matéria de geração humana, afastou-se da vivência e da sensibilidade contemporâneas, de modo que, hoje, torna-se necessário encarar a fundo a pergunta porquê gerar, para poder oferecer as condições de possibilidade de uma autêntica ação de gerar. A necessidade de repensar, de forma personalista, o tema do gerar deve unir-se à urgência educativa. Uma tal ligação entre o gerar e a educação põe em primeiro plano a importância das relações pais-filhos. A crise do gerar é a expressão mais profunda da crise de fé, que a família e a Igreja são chamadas a superar.

A paternidade é um caminho que tem as suas etapas. Em cada uma delas, os pais aprendem a sê-lo, crescendo juntamente com os filhos. A maturação dos pais e a dos filhos dão-se em níveis distintos, mas existe entre elas uma estreita relação.

A crise do gerar provocou uma mudança na relação entre gerações. Hoje em dia, os avós adquiriram, nesse sentido, um maior peso e importância. Como recordou Bento XVI em Valência, os avós “são um tesouro, que não se pode roubar às novas gerações, sobretudo quando dão testemunho da fé”.[45] Hoje em dia, alguns anciãos, entre os quais se encontram muitos avós, sentem-se como um peso na família, preferindo viver sós ou em lares de idosos, com as consequências que isso comporta.[46] A sua entrega, o seu sacrifício, o seu testemunho e a sua presença são uma memória viva para a família. A tarefa educativa dos avós é sempre muito importante, ainda mais quando os pais, por diversas razões, não podem assegurar uma adequada presença com os filhos na idade de crescimento.

 

5.3. A misericórdia como virtude própria da paternidade

 

Se a filiação estava unida ao agradecimento e à piedade filial, se a esponsalidade é chamada a mostrar a fidelidade do amor, a experiência da paternidade e maternidade está vinculada a essa transformação do amor em misericórdia. Os pais, através do mútuo perdão (etimologicamente per-donum, plenitude do dom)[47]vão-se convertendo para os filhos em testemunhas do amor misericordioso. Aprender a amar é, também, aprender a perdoar. A essência mais profunda da paternidade não é, então, a autoridade, mas a misericórdia, como uma “afetividade divina”, que nos revela o mais profundo do significado do amor.

 

 

6. Conclusão: necessidade de uma cultura da família[48]

 

Como ajudar os jovens a descobrir e a seguir a sua vocação matrimonial? Como apoiar os casados a perseverar na sua própria vocação? Como aprender a ser pais e educadores dos filhos? O caminho da vocação ao amor consta das experiências apenas descritas. Essas experiências mostram como a plenitude do amor precisa da docilidade da filiação, da solidariedade fraterna, da fidelidade conjugal, da fecundidade da paternidade e maternidade, da sabedoria dos avós.

 

Considerar o matrimónio como uma própria e verdadeira vocação cristã, abre-nos, portanto, a um horizonte luminoso, em que, ao mesmo tempo, se percebe também a sua fragilidade e a urgência de uma nova evangelização. Ajudar os jovens a descobrir a sua vocação, acompanhar os noivos no seu itinerário de fé, apoiar os casais a construir uma comunhão, apoiar os pais na criação e educação dos filhos, supõe uma pastoral verdadeiramente integral, como propõe o Diretório, ou seja, uma pastoral capaz de superar as múltiplas fragmentações, a que anda sujeita a vida do homem contemporâneo. À medida que se consiga superar a visão do matrimónio como uma realidade meramente privada, a pastoral familiar ir-se-á convertendo numa dimensão essencial de toda a evangelização.[49] Nesse sentido, é importante que a iniciação cristã não se distancie da pastoral juvenil, que esta não se separe da pastoral matrimonial e que esta não se alheie da pastoral familiar.

Para atingir tal objetivo, há que cultivar e difundir uma nova cultura da família. Não se trata de ações pontuais e isoladas, mas de um contínuo trabalho em profundidade, que vá conseguindo amar a família, que gere testemunhas convincentes e convencidas, capazes de mostrar a beleza e a santidade da vocação conjugal e familiar. Por conseguinte, como parte essencial desta cultura da família, são necessários quer um juízo crítico para discernir o que é conforme ou não com o desígnio divino, quer o gerar uma cultura da vocação matrimonial, onde esta possa germinar, crescer e chegar à plenitude.[50] A Igreja conhece o caminho por onde o matrimónio e a família podem chegar ao fundo da sua mais íntima verdade, à sua verdadeira plenitude. Se o matrimónio é uma vocação, a missão de anunciá-lo e testemunhá-lo é gratificante.



[1] Xenofonte, Memorabilia II, 1, 21-34.

[2] J. Ratzinger-Bento XVI, Jesus de Nazaré, La esfera de los libros, Madrid 2007, 208.

[3] Cf. G. Angelini, Il figlio: una benedizione, un compito, Vita e pensiero, Milão 1991.

[4] João Paulo II, Evangelium vitae, n. 1.

[5] Ver, a propósito, as sugestivas reflexões de M. Chiodi, “Generare: dono da un dono”, in J. Noriega – M. L. Di Pietro, Fecondità nell’infertilità, Roma 2008, 21-41.

[6] Concílio Vaticano II, Constituição Gaudium et spes, n. 24.

[7] Virgílio, Bucólicas. Egloga, IV, l. 60: “Incipe, parve puer, risu cognoscere matrem”.

[8] H. U. von Balthasar, “El camino de acceso a la realidad de Dios”, in J. Feiner – M. Löhrer (eds.), Mysterium Salutis II: La historia de la salvación antes de Cristo, Cristiandad, Madrid 1992, 30.

[9] Cf. Ensaio póstumo de D. Von Hildebrand, La gratidud, Encuentro, Madrid 2000; B. Schwarz, Del agradecimiento, Encuentro, Madrid 2004.

[10] Ver, a este respeito, T. Styczen, “Vivere significa ringraziare. “Gratias ago, ergo sum”. La cultura della vita come cultura del ringraziamento”, in Comprendere l’uomo, Lateran University Press, Roma 2005, 273-298.

[11] Cf. J. Larrú, “La virtud del agradecimiento”, in M. Aroztegi (ed.), Palabra, Sacramento y Derecho. Homenaje al Cardenal Antonio Mª Rouco Varela, BAC, Madrid 2014, 377-392.

[12] H. Arendt, The Life of the Mind, vol. II Willing, Harcourt Bruce, New York 1978, 185.

[13] P. Valéry, “Mémoire”, in Cahiers 1894-1914, Gallimard, Paris 1987, I, 1239: “A Memória não se perde. A lembrança é indelével. É o caminho da lembrança que se perde”.

[14] João Paulo II, Assombro, Tríptico Romano, Universidade Católica S. António, Murcia 2003, 19-21.

[15] Catecismo da Igreja Católica, n. 144.

[16] João Paulo II, Familiaris consortio, n. 11; AAS 74 (1982), 92: “Deus est amor in seque vivit ipse ex mysterio personalis amoris communionis. Ad suam imaginem creans ac perpetuo in vita conservans humanam naturam viri ac mulieris, Deus indidit ei vocationem ac propterea potestatem et officium, cum conscientia coniunctum, amoris atque communionis”.

[17] Cf. A. Orbe, “Espiritualidad de S. Ireneo”, in Analecta Gregoriana 256, Roma 1989.

[18] E. Mounier, “Manifeste au service du personnalisme”, in Œuvres I, Éditions du Seuil, Paris 1961, 528.

[19] Sigo aqui algumas ideias fundamentais das conferências feitas em Viena, em 1958, por J. Ratzinger: J. Ratzinger, La fraternidad de los cristianos, Sígueme, Salamanca 2004 (Die christliche Brüderlichkeit, Kösel Verlag, München 1960).

[20] Cf. J. R. Flecha, “La fraternidad como vocación ética”, in AA.VV., El Dios y Padre de nuestro Señor Jesucristo: XX Simpósio Internacional de Teologia da Universidade de Navarra, Serviço de Publicações da Universidade de Navarra, Pamplona 2000, 409-425.

[21] J. M. Díaz Rodelas, Pablo, impulsor de la fraternidad, in Corintios XIII,129 (2009) 12-24.

[22] J. RAWLS, Teoría de la justicia, Fondo de Cultura Económica, México 1978, 128.

[23] Francisco, Lumen fidei, n. 54.

[24] J. Ratzinger, La fraternidad cristiana, Taurus, Madrid 1962, 63.

[25] R. Gibellini, “L’enciclica della fraternità universale”, in L’Osservatore Romano (31-10-2009).

[26] P. Grelot, Les paroles de Jésus Christ (Introduction à la Bible, Nouveau Testament 7), Desclée de Brouwer, Paris 1986.

[27] Um lindo comentário desta parábola pode encontrar-se em: J. Ratzinger – Bento XVI, Jesus de Nazaré. Primeira parte: do Batismo à Transfiguração, La esfera de los libros, Madrid 2007, 243-253.

[28] Concílio Vaticano II, Gaudium et spes, n. 24.

[29] Para uma análise sintética do tema do dom, pode ver-se: R. T. Caldera, “El dom de sí”, in: A. Aranda (ed.), Trinidad y salvación. Estudios sobre la trilogía trinitaria de Juan Pablo II, Universidade de Navarra, Pamplona 1990, 275-287.

[30] Cf. G. Zuanazzi, L’età ambigua. Paradossi, risorse e turbamenti dell’adolescenza, La Scuola, Brescia 1995, T. Anatrella Interminables adolescentes: les 12-30 ans, puberté, adolescence, postadolescence: une société adolescentrique, Éditions du Cerf, Paris 1997.

[31] Ver, a propósito: G. Angelini, Educare si deve, ma si può?, Vita e Pensiero, Milão 2002; M. De Paoli, I fondamenti dell’educazione e la morale in Giuseppe Angelini, Pontifício Instituto João Paulo II, Roma 2005.

[32] Cf. J. J. Pérez-Soba, El “pansexualismo” de la cultura actual, Diálogos de Almudí, Valência 2004.

[33] Cf. J. Burgraff, “Género”, in Lexicón. Términos ambiguos y discutibles sobre familia, vida y cuestioneséticas, Palabra, Madrid 2004, 511-519.

[34] A importância da afetividade é atualmente objeto de constante aprofundamento. Ver, por exemplo, F. Botturi – C. Vigna, Affetti e legami, Vita e pensiero, Milão 2004.

[35] Conferência Episcopal Espanhola, Directorio de la Pastoral Familiar de la Iglesia en España, n. 19.

[36] Cf. M. Nédoncelle, La fidelidad, Palabra, Madrid 2002.

[37] D. Von Hildebrand, La esencia del amor, Eunsa, Pamplona 1998, 385. É interessante todo o capítulo XIII desta obra, intitulado La fidelidad, 383-404. Para um maior desenvolvimento da fidelidade, ver o capítulo VIII.

[38]A expressão “fidelidade criadora” é frequentemente usada por G. Marcel. Ver G. Marcel, “La fidélité créatrice”, in Révue Internationale de Philosophie 2 (1939-1948) 96.

[39] Cf. J. Noriega, “Affettività e integrazione”, in Anthropotes XX (2004) 163-176; Id., El destino del eros.Perspectivas de moral sexual, Palabra, Madrid 2005.

[40] M. Rhonheimer, Ética de la procreación, Rialp, Madrid 2004.

[41] Cf. entre outros: A. Mitscherlich, Auf dem Weg zur vaterlosen Gesellschaft-Ideen zur Sozial-psychologie, R. Piper & Co. Verlag, München 1963; H. B. Biller, La deprivazione paterna, Il Pensiero Scientifico, Roma 1978; G. Storace, La paternità, Franco Angeli, Milano 1983; G. Angelini, Il figlio. Una benedizione, un compito,Vita e Pensiero, Milão 1991; L. Zoja, Il gesto di Ettore. Preistoria, storia, attualità e scomparsa del padre,Bollati Boringheri, Turim 2000; J. Cordes, Die verlorenen Väter-Ein Notruf, Verlag Herder, Freiburg 2002; C. Rise, Il padre l’assente inaccettabile, Edizioni San Paolo, Cinisello Bálsamo (Milão) 2004. O número 2 de 1996 da revista Anthropotes, especialmente: T. Anatrella, “Crise de la paternité”, in Anthropotes 2 (1996), 219-234; P. Morandé, “La imagen del padre en la cultura de la postmodernidad”, in ibid., 241-260; A. Scola, Paternità e libertà, ibid., 337-343; G. Zuanazzi, “Il padre tra realtà e finzione”, in ibid., 235-240; P. Ferliga, Il segno del padre. Nel destino dei figli e della comunità, Moretti & Vitali, Bergamo 2005; M. Realcati, Cosa resta del padre. La paternità nell’epoca moderna, Rafaello Cortina, Milão 2011.

[42] G. Kanitzà, Il Nome-del-Padre nella psicoanalisi. Freud-Jung-Lacan, Ares, Roma 2008.

[43] Cf. M. Realcati, Cosa resta del padre. La paternità nell’epoca ipermoderna, Rafaello Cortina, Milão 2011.

[44] M. Gauchet, Il figlio del desiderio. Una mutazione antropologica, Vita & Pensiero, Milão 2010.

[45] Bento XVI, “Encuentro festivo y testimonial” (8.07.2006), in L’Osservatore Romano, (14.07.2006), 11.

[46] Bento XVI, Discurso ao Pontifício Conselho para a Família, (5.04.2008).

[47] Para uma reflexão filosófica e etimológica do termo, ver: P. Gilbert, “Le pardon dans la culture contemporaine”, in Studia Moralia 38 (2000) 405-435.

[48] Cf. L. Melina, “La cultura de la familia. Profecía y signo”, in Anales Valentinos 57 (2003), 1-12.

[49] Conferência Episcopal Espanhola, Directorio de la Pastoral Familiar de la Iglesia en España, n. 21.

[50] Cf. João Paulo II, Discurso “Laissez-moi” (26.11.1982), n. 1.

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