A transmissão da vida e o desafio da quebra de natalidade

Artigo de Padre Duarte da Cunha, publicado em Família Cristã, Junho de 2015

 

«Quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa». São João Paulo II, Carta às Famílias (1994).

No documento conclusivo da Assembleia Extraordinária do Sínodo dos Bispos do ano passado, que também serviu para promover – como Lineamenta – a reflexão em vista da segunda grande etapa deste sínodo, que acontecerá em Roma no próximo mês de outubro, não temos, nem se pretendia ter, uma síntese harmónica do que a Igreja tem para dizer às famílias sobre o mistério que é a família, nem sequer sobre as principais linhas a implementar na pastoral da família. O que temos, por enquanto, são documentos preparatórios que têm como objectivo levar todos a procurarem perceber o que se passa e o que há a fazer.

Os bispos, e todos os que se reunirem com eles no próximo sínodo, vão estar diante deste grande desafio: acolher o que Jesus Cristo, nosso Bom Pastor, lhes dá como orientação pastoral. O método deverá ser teológico, muito antes de ser sociológico. Mais do que considerar os movimentos sociológicos como normativos, temos de conhecer o plano de Deus. O que faz do magistério uma voz profética é ele apresentar a Palavra de Deus, que é sempre válida, fazendo ver a pertinência para o momento histórico.

Um dos pontos referidos no documento tem que ver com a fecundidade do amor conjugal. É evidente que ao falarmos de família se tem de falar desse mistério, que se poderia chamar milagre, que é a transmissão da vida. Que de um casal nasça um filho é mesmo uma “coisa do outro mundo”! Deus criou os homens de modo a que o método, ou instrumento, que traz ao mundo um novo homem ou mulher tornasse claro que na origem de cada um está um ato de amor. Cada pessoa é querida e amada por Deus desde o primeiro instante, por isso o lugar escolhido para um novo ser humano vir à luz é a comunhão de amor que une um esposo e uma esposa. Na verdade, no ato pelo qual os esposos realizam a comunhão corporal – expressão do amor que os une -, acontece o ato procriativo.

Toda a doutrina da Humane vitae, a encíclica de Paulo VI sobre a fecundidade do amor, tão elogiada pelo Papa Francisco e pelos seus predecessores, e da qual o documento do sínodo diz: «Há que redescobrir a mensagem da encíclica que sublinha a necessidade de respeitar a dignidade da pessoa» (nº 58), está determinada por esta certeza: no plano divino, o significado unitivo e o significado procriativo do ato conjugal estão unidos para testemunhar que Deus nos cria por amor. São João Paulo II recordou na Carta às Famílias de 1994: «Quando da união conjugal dos dois nasce um novo homem, este traz consigo ao mundo uma particular imagem e semelhança do próprio Deus: na biologia da geração está inscrita a genealogia da pessoa».

É certo que a maioria das pessoas não se apercebe deste plano. A mentalidade secularizada em que vivemos não reconhece que Deus tem um plano de amor. A propósito do amor, parece que só o que serve para ganhar alguma coisa, o que nos dá prazer ou o que possuímos pode ser amado. O amor, por isso, é visto como um desejo daquilo que posso consumir ou me dá prazer e não como algo que me leva a ir ao encontro do outro e estar em comunhão com ele. Inevitavelmente, os significados unitivo e procriativo do matrimónio cristão ficam difíceis de serem compreendidos e vividos.

Olhando para os grandes mistérios da nossa fé, ou seja, a Páscoa de Cristo e a Santíssima Trindade, descobrimos quem é Deus, mas também quem somos nós e o que somos chamados a ser. Fomos criados à imagem e semelhança de Deus para amarmos e vivermos em comunhão com Ele. Com Cristo na cruz aprendemos o que é amar: dar a vida pelo outro; acolher o outro como ele é; nunca desistir. Amar como Jesus nos amou é a libertação maior de todas, mas é possível porque Jesus nos leva a estar com Ele e assim a viver em comunhão com Deus, com a Santíssima Trindade, e a receber de Deus uma vida nova. A fecundidade do amor, como a Ressurreição de Jesus, surge deste amor que é comunhão de vida. O texto do sínodo fala da «abertura incondicional à vida como algo de que o amor humano precisa» (nº 58).

A vocação à fecundidade é uma dimensão fundamental do amor. A questão, portanto, está em perceber como ser fecundo. Por um lado, o essencial é a disponibilidade para receber os filhos como dom de Deus, mas por outro lado ela vai além dos filhos e também se exprime nas missões derivadas e dependentes do amor do casal: adotar crianças (nº 58), empenho na vida pastoral – por exemplo na catequese de crianças, ou na pastoral juvenil, mas também na preparação de noivos e no acompanhamento de casais -, cuidado de doentes ou idosos, compromisso político, etc.

Há, portanto, uma lógica no amor que Deus imprime na realidade e que constrói a felicidade humana e a coesão social. Mas há questões na nossa sociedade que levam a uma quebra grave da natalidade. Esta quebra é em si um problema, mas é sinal de muitas fragilidades na nossa sociedade. O sínodo refere as questões económicas, (nº 57), como um fator importante que leva um casal a decidir não ter tantos filhos. Ora nós não podemos assistir a isto impavidamente. Quem nos governa deve apoiar quem tem filhos. Cada pessoa concebida é um dom para todos. Que haja medo de ter filhos ou que se negue a alguns que já foram concebidos o direito a nascer é grave e mau para todos, e retira a esperança da vida humana. Contudo, não creio que sejam só problemas económicos a fazerem da nossa uma cultura pouco aberta à vida.

Os dados mostram que aqueles cuja fé é alimentada constantemente têm mais filhos. Têm mais esperança, mais consciência da missão e mais entusiasmo. Mesmo que sintam constrições económicas, os que estão abertos a Deus estão mais conscientes da beleza da fecundidade e vivem mais intensamente o amor e porque vivem em comunidade contam com mais ajudas. A urgência, por isso, do sínodo, é reafirmar a importância de levar a alegria do Evangelho a todos. Com Cristo diante dos olhos e no coração, o amor sai reforçado e a vontade de comunicar vida e educar outros para descobrirem a beleza da vida também aumenta.

Scroll to Top