A sadia educação e a propagação de ideologias – família e sexualidade nas escolas (2 de 3)

No segundo artigo da série, discutiremos, à luz da filosofia aristotélico-tomista, como é possível aplicar a noção aristotélica do conhecimento por quatro causas à noção de família, proporcionando critérios seguros para estabelecer um conhecimento mais profundo e mais respeitoso dessa realidade

 

Brasilia, 17 de Novembro de 2015 (ZENIT.org) Paulo Vasconcelos Jacobina

No primeiro artigo desta série, havíamos proposto três perguntas que se relacionam com a decisão de inserir para os alunos, na mais tenra infância, uma discussão moderninha a respeito das “novas configurações de família”, fundamentadas numa concepção de família (e portanto também de sexualidade) que tem fundo ideológico (mais sobre a diferença entre teoria e ideologia num artigo aqui), mas que está se impondo na nossa sociedade como fato consumado, a partir de uma série de equívocos filosóficos e pedagógicos e do apoio da grande mídia.

Discutimos, no primeiro artigo, aqui, a diferença entre uma pedagogia reta, de matriz aristotélico-tomista, em que o binômio “conhecer” e “refletir” fundamentam uma noção de liberdade dirigida ao fim de atualizar as potências dos seres e as virtudes das pessoas, ou seja, de participar num mundo dado e aberto, como criatura, por um lado, e a pedagogia do binômio “pensar” e “construir”, por outro, com seu existencialismo laicista que coloca as pessoas como vontades onipotentes e adversárias do outro por princípio, deusezinhos incapazes de lidar com limites e frustrações, e como, no confronto entre ideólogos e crianças, estas últimas são a parte frágil de uma luta entre “pensamentos” e “construções de mundo”.

Agora, trata-se de propor o seguinte questionamento: à luz da teoria aristotélica das quatro causas e dos atos e potências, bem como da noção aristotélico-tomista de analogia de atribuição e de proporcionalidade, o que significa “família”? É possível acolher e discutir toda a riqueza da noção de família à luz do conceito filosófico da analogia, sem, ao mesmo tempo, desprezar os critérios da reta razão, da cultura e das tradições religiosas autênticas?

A covardia da discussão emocionalista.

Há uma primeira observação a ser feita aqui. A nossa contemporaneidade está permeada por um “emotivismo moral” que tem um fundo muito autoritário, porque impede de antemão as discussões de certos temas a partir de uma falsa noção de misericórdia. Tratamos deste tema num artigo aqui, mas, em resumo, trata-se de acusar o outro de insensível, de farisaico, de retrógrado, a partir da reafirmação das suas próprias dores existenciais – algo como confundir propositalmente entre um torturador e um cirurgião. Assim, alguém que argumenta que “o dia dos pais e o dia das mães não deve existir” porque “meu filho sente muita mágoa por não ter pai/mãe, e é muita maldade celebrar a paternidade quando tantos não têm pai, e um pai nem sequer é essencial numa nova conformação de família” não está argumentando seriamente, mas desviando a discussão através do sentimentalismo. A paternidade é um fato biológico, cultural e social importantíssimo, e a dor psicológica pela sua ausência acidental não se resolve pela eliminação do louvor da paternidade pelo outro. Também o apelo barato a uma noção sentimentalóide de “amor” como “único fundamento da família” tem a dimensão de mera propaganda ideológica que impede a verdadeira discussão. Nem a verdadeira noção de amor é esta, nem a família se limita a ser “somente amor”. Tratamos disso num outro artigo aqui.

As quatro causas e a família.

Falamos, no primeiro artigo, de uma reta pedagogia que parte de uma reta filosofia, de origem aristotélico-tomista, que reconhece o conhecer como o encontro com este ser que interpela o conhecedor, e precede logicamente ao conhecimento, e que tem proporção com a inteligência que conhece; neste sentido, o real, que mensura o conhecimento, revela-se com uma estrutura ontológica muito simples, em que o dinamismo do existir não tem uma rigidez determinista, mas longe disso, caminha das potências aos atos, aberto à liberdade humana, através de quatro causas: a causa material, a causa eficiente, a causa formal e a causa final.

Para imaginar que é possível aplicar a noção de conhecimento pelas quatro causas à realidade da família, é preciso fazer uma declaração preliminar importante: a de que a família não é uma “construção social”, mas uma realidade ontológica humana, que, é certo, apresenta variações culturais e históricas importantes, mas que existiu, de uma maneira ou de outra, como realidade apreensível pelo menos de modo analógico em absolutamente todas as sociedades humanas até hoje. Ela existia antes que houvesse filósofos, professores, escolas, estados e nações, e presumidamente existirá enquanto for viável existirem pessoas humanas na Terra. E isto por uma questão de necessidade ontológica, não de contingência cultural ou histórica: enquanto houver pessoas humanas juntando-se para reproduzir, haverá, ao menos analogicamente, uma família, quaisquer que sejam os condicionamentos conjunturais.

Seria impossível fazer aqui uma explicação mais detalhada das quatro causas. Qualquer introdução à filosofia minimamente decente o fará – e isto exclui a maior parte dos livros secundários de filosofia atualmente em uso, com suas pretensões sociopolíticas e seu afetado engajamento pseudocrítico. Mas cabe-nos aplicar esta estrutura ontológica das quatro causas à realidade da família, para estabelecer critérios. E tornar claro exatamente do que estamos falando, quando falamos de família. Como dizia o velho Aristóteles, somente se pode falar em conhecimento científico quando se conhece pelas causas. E somente se pode debater um pensamento quando se conhece a raiz do que se está pensando. Por isso, exponho abertamente as raízes do que penso, num debate em que muito poucos fazem o mesmo – o que constitui, aliás, uma deslealdade no debate.

Eis então como se conhece a família pelas quatro causas.

A causa material.

Qualquer família tem em si uma causa material. Esta e constituída por seres humanos, criaturas a um só tempo corporais e espirituais, mas que são causa material exatamente na sua materialidade: somente a partir de corpos complementares há uma justa causa material para a construção do conceito analogante de família (mais sobre analogia adiante). E esta não é uma constatação arbitráriadois corpos biologicamente complementares representam o requisito mínimo suficiente para que a família ganhe relevância além dos dois envolvidos, uma vez que este é o requisito material mínimo e suficiente para que as relações entre os dois seres corporais envolva naturalmente a potencialidade de geração de um terceiro ser corporal. Nenhuma outra causa material pode gerar tal efeito, e todas as outras podem ser reduzidas a esta, quer por univocidade, quer por analogia.

A causa formal.

A causa formal, ou forma, é constituída pela união estável e complementar, expressamente manifestada, de declaração de aceitação do outro e de disposição de assumir as consequências decorrentes de uma união assim, para o bem dooutro e da prole a vir. A manifestação adequada da vontade, portanto, pode ser analogada pela sua manifestação tácita, no caso das uniões de fato, ou mesmo pela imposição involuntária da responsabilidade ao genitor leviano, no caso da reprodução por relação casual. Nestes dois últimos casos, temos famílias por analogia, como analogados secundários à analogante família causada por “consentimento expresso e informado”, que é causa formal perfeita da família. Falar em analogia não representa, aqui, um julgamento moral, daquelas realidades familiares resultantes de causas formais imperfeitas, mas de um mero critério ontológico.

A causa eficiente e a causa final.

Quanto à causa eficiente, trata-se, aqui, da sexualidade exercida no campo da complementariedade (causa material) e da abertura à fecundidade (causa final, de que trataremos adiante). A sexualidade, portanto, pertence à órbita da causa eficiente da família, mas há estruturas que podem ser designadas como família por analogia em que a sexualidade não se exerce com a perfeita atualização de suas potências procriativas, como nos casais naturalmente inférteis, ou mesmo não se exercem nenhum sentido, como no caso em que um dos cônjuges falta e o outro prossegue com a criação da prole. Por fim, a causa final é o apoio estável recíproco, em comunhão de vida de base sexual complementar, e a abertura à procriação; há, também aqui, arranjos análogos que merecem o nome de família, mesmo sem atualizar completamente suas potências quanto às causas finais. Falo, por exemplo, de cônjuges que casaram-se já idosos, sem fecundidade natural em razão da idade. Eles continuam, em tese, abertos à causa final da procriação, mas isto já não depende de sua vontade. Ou de famílias formadas por um só dos cônjuges e sua prole.

Trataremos da aplicação da analogia à noção de família no próximo artigo.

 

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