A Família no centro das atenções – 13. A mística do quotidiano

13. A mística do quotidiano

Ao ler o livro intitulado «Viver como crentes no mundo em mudança» (de Maria Clara Bingemer, professora da PUC-Rio, editado pelas Paulinas em 2013), deparei-me com um ponto onde a autora reflecte sobre os desafios atuais à existência crente. Entre os vários desafios aí apresentados surgiu um que prendeu de uma maneira especial a minha atenção e interesse, ao apontar a necessidade urgente de se reconfigurar, nos nosso dias, uma mística da profanidade, capaz de testemunhar que não é necessário ignorar a realidade, ou sair dela, para se poder fazer uma autêntica experiência de Deus.

 

Esse desafio trouxe-me à memória outros textos, onde Juan Martin Velasco fala na mística da quotidianidade, expressão que eu prefiro por me parecer mais adequada àquilo que quero partilhar e que, por isso, escolho para título destas linhas.

Antes de avançar, julgo, no entanto, ser conveniente explicitar, ainda que de um modo necessariamente muito breve, o que se pode entender por mística. Com esta categoria não me quero referir àqueles acontecimentos que normalmente são descritos ao falar da experiência mística. Quando lemos com atenção o testemunho dos místicos, esses fenómenos, se bem que muitas vezes referidos, não são, contudo, considerados como sendo o mais importante da experiência que estão a narrar. O central, aquilo que verdadeiramente os místicos nos querem testemunhar com a narração das suas experiências, é o encontro pessoal com Deus. Esse sim é o centro sempre destacado e sublinhado e a experiência desse encontro é o que querem testemunhar, como convite a que os leitores a ousem também fazer. Isso é claro quando lemos, por exemplo, os textos de Teresa de Jesus, cujo quinto centenário do nascimento se celebra durante este ano.

Ao falar da mística do quotidiano o que se quer, então, referir e apontar é a experiência de Deus no quotidiano da vida, ou seja, a experiência de encontro com Ele no meio dos acontecimentos do dia-a-dia. É precisamente a este nível que a temática me parece sugestiva, podendo ser muito interpelante quando abordada, também, no contexto da reflexão sobre a família.

A necessidade urgente de reconfigurar uma mística do quotidiano passa por ressituar o sagrado e a experiência de Deus no coração do mundo e do humano. Isto de modo nenhum quer dizer que não sejam possíveis, e até necessários, momentos e tempos em que uma pessoa se retira para poder ter mais intensamente presente esse encontro; tal como não quer questionar as vocações de clausura, das quais somos capazes de intuir a importância e, igualmente, a necessidade. O que se quer afirmar é que, mesmo nesses momentos e experiências, a realidade do mundo e a vida humana não podem estar ausentes. De certo modo, também para aqueles que vivem ‘retirados’ faz todo o sentido falar em mística do quotidiano, pois trata-se de fazer a experiência de Deus no meio de todas aquelas experiências e momentos com que se tecem os seus dias. Mesmo no ‘meio das panelas’, como nos testemunha Santa Teresa.

Nesta mística do quotidiano é igualmente necessário redescobrir a importância dos sentidos, da corporeidade e da dimensão das emoções na experiência espiritual cristã. Quando a experiência de fé não toca no afectivo, sem contudo se reduzir a ele, há dimensões da vida humana que ficam como que ‘de fora’, correndo-se o risco de se segmentarizar essa mesma experiência da fé, que assim parece só ter a ver com certas coisas da vida.

A mística do quotidiano é, no fundo, a experiência do Deus encarnado, e de outro modo não poderia ser, quando a encarnação é uma das notas maiores da identidade cristã. Sem a encarnação, em bom rigor, não poderíamos falar em cristianismo. Nada do que é humano pode ser estranho à mística cristã, por isso a vida humana, no seu concreto, não pode ser olhada como algo que atrapalha a experiência de encontro com Deus, pelo contrário, tem de ser percebida como aquela realidade da qual ela se alimenta.

A vida familiar é simultaneamente escola e lugar onde esta realidade se vive. No dia-a-dia da vida da família os seus membros fazem a experiência profunda do amor que os une. Todos sabemos como, tantas e tantas vezes, é no meio daquelas coisas, ‘quase que insignificantes’, daqueles acontecimentos, ‘quase que irrelevantes’, que fazemos a experiência de sermos tão importantes uns para os outros. Nas coisas comuns do dia-a-dia sabemo-nos e sentimo-nos amados e, por isso, até preparamos momentos especiais para celebrar essa realidade que experimentamos todos os dias, em todas as ocasiões, mas que nem sempre temos conscientemente presente. Também pode ser assim com a experiência de encontro com Deus. A vida familiar pode, igualmente, ser esta escola e lugar onde se vive a mística do quotidiano. No meio daquelas coisas com que se tece a existência humana de todos os dias, podemos fazer a experiência de sermos sustentados e amados por Deus e podemos, também, amá-lo. Quando assim é, certamente seremos capazes de experimentar que não é Deus que se reduz ao tamanho do nosso viver, mas é a nossa vida que se pode engrandecer até ao tamanho do viver de Deus 

Escrito por Juan Ambrósio e publicado em Jornal da Família, abril de 2015

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