Teologia e Direito Canônico

Rafael Navarro-Valls  |  01/04/16

 

Os juristas sabemos que não existe instituição jurídica que, vista de perto, não descubra em seguida um longo processo de decantação histórica que culmina na normativa que se pretende estudar. Para compreender o direito vivo é imprescindível respeitar a sua história. Em especial, no caso do Direito Canônico que tem um fundo teológico.

Por isso, por trás da leitura das páginas que o cardeal Fernando Sebastian – nas suas recentes “Memórias com esperança” – dedica à figura jurídica das prelazias pessoais, me parece oportuno, como jurista, esclarecer certos aspectos que, nesse livro, não ficam adequadamente explicados, talvez porque a memória do autor, há uma distância de muitos anos, poderia facilmente esbater os fatos um pouco. Para o leitor não informado advertirei que, por “prelazia pessoal”, entende-se em Direito uma circunscrição eclesiástica, delimitada por critérios pessoais, que é erigida para a realização de determinadas obras pastorais ou missionárias peculiares.

Para o autor da obra ao qual acabo de referir-me, “A figura das prelazias pessoais tinha aparecido nos textos do Concílios provavelmente por sugestão de alguém da mesma Prelazia” (refere-se à Prelazia do Opus Dei). Na verdade, a figura das Prelaturas pessoas foi estabelecida após exame, discussão e proposta de duas diferentes Comissões conciliares de trabalho, completadas pela sucessiva discussão e aprovação na Congregação geral por 2.390 bispos. Ao que se acrescenta a definitiva sanção e promulgação pelo Papa Paulo VI no dia 7 de Dezembro de 1965. Precisamente, a popularidade do Concílio Vaticano II baseia-se, entre outros fatores, na seriedade com que foram tomadas as suas obras.

Os fatos são essenciais para compreender as ações de um legislador, neste caso o Papa São João Paulo II. Portanto, diante de uma norma, se requer uma dupla perspectiva: a histórica e a sistemática, de forma que o intérprete tenha em conta os pressupostos de fato da mesma na sua posição natural e verdadeira. Referindo-se à primeira Prelazia Pessoal (a Opus Dei) – aprovada depois de um dos estudos mais exaustivos que se fizeram na história das instituições canônicas – o cardeal Sebastián afirma: “Em agosto de 1982…, (no qual) o Papa tinha intenção de erigir o Opus Dei como Prelazia Pessoal, sob o cânon 295″.

Sobre este ponto eu gostaria de contribuir ao livro do autor, que na época (1982) o cânon que cita ainda não existia, com o que a afirmação é perdida no nada jurídico, produzindo a natural desorientação para o leitor não iniciado. Convém que este saiba que essa norma (o c. 295) pertence ao Código de Direito Canônico promulgado no dia 25 de janeiro de 1983. Os fatos certos são que João Paulo II, como se sabe, tomou a decisão de erigir o Opus Dei em Prelazia Pessoal, com base no repetido e sério estudo feito na Congregação de Bispos da Cúria Romana desde 1979, e à consulta subsequente ao episcopado mundial, que o próprio Papa ordenou que fosse feita em novembro de 1981.

Nesta consulta, o Papa ordenou que fosse enviado aos bispos o esquema do estatuto jurídico da futura prelazia, onde ficava claro que o Opus Dei, para a realização da sua atividade apostólica, continuaria solicitando, como antes, a vênia (ou seja, a autorização) dos respectivos bispos diocesanos, com os quais manteria contato de harmônica colaboração. Daí que seja uma suposição não correta esta que o autor escreve: “Isso supunha que era concedido ao Opus Dei um estatuto jurídico à margem da autoridade dos bispos”. Segundo o Secretário Geral da Conferência Episcopal Espanhola na época, “… enviamos nossos informes contrários”. Esta posição foi bastante isolada, pois a verdade é que a grande maioria dos bispos consultados através das Nunciaturas de todo o mundo deu o seu parecer favorável, certamente também os espanhóis.

Concordo com o autor em que: “. … a Prelazia não é comparável a uma diocese” Na verdade, a doutrina canônica, incluindo o autor destas linhas, exclui uma completa equalização. Mas do que me permitirá discordar D. Fernando é do que implicitamente afirma: de que a Prelazia Pessoal não pertence à estrutura hierárquica da Igreja.

Aqui eu gostaria de salientar que é importante que não se confundam dois conceitos diferentes: “Igreja particular” e “constituição hierárquica da Igreja”. Pertencer à constituição hierárquica da Igreja de uma Prelazia erigida pela Sé Apostólica para a realização de um especial trabalho pastoral, não é porque seja uma Igreja particular – que não é – mas porque tendo o Prelado, seja ou não bispo, um poder eclesiástico de jurisdição ordinária e própria, se insere na estrutura hierárquica.

Teologia e Direito são dois picos que, muitas vezes, contemplam o mesmo objeto. Mas, como disse um excelente canonista, “não deve fazer-se Direito de forma teológica nem Teologia de forma jurídica” (Jimenez Urresti). Por isso, me permiti estas cordiais observações que somente pretendem orientar o possível leitor sobre um extremo jurídico, e sugerir algumas ideias ao ilustre teólogo, autor de “Memorias com esperanza”.

Rafael Navarro-Valls, é catedrático de Direito Canônico e acadêmico/secretário geral da Real Academia de Jurisprudência e Legislação da Espanha

 

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