O vaticanista Andrea Tornielli analisa as críticas ao pontificado de Bergoglio nos últimos dois anos, desde o magistério social até a acusação de “leninismo”
Por Luca Marcolivio
ROMA, 13 de Março de 2015 (Zenit.org) – Um Pontífice certamente amado pelo povo e pelas pessoas mais humildes, que ele mesmo ama. Decididamente menor a estima do mundo intelectual (especialmente entre os conservadores) e os poderes fortes ligados ao capitalismo mundial.
Há dois anos do começo do seu pontificado, o caminho traçado pelo Papa Francisco sobre a “cultura do desperdício”, sobre o poder econômico que explora o homem e sobre o materialismo que vai contra a dignidade da pessoa, despertou aprovações mas também descontentamentos.
Para esclarecer a verdadeira natureza do magistério social de Jorge Mario Bergoglio, Andrea Tornielli e Giacomo Galeazzi, ambos vaticanistas de La Stampa, publicaram há alguns meses, o artigo Questa economia uccide (Esta economia mata, trad. Livre), incluindo uma entrevista com o Papa.
Em uma entrevista com Zenit, Tornielli falou sobre o conteúdo do artigo e sobre as críticas à obra de Francisco, lembrando, porém, que cada pontificado sempre foi alvo de críticas e mal-entendidos, mesmo dos católicos.
ZENIT: Do livro que você fez com Giacomo Galeazzi, surge um fato indiscutível: a doutrina social do Papa Francisco está em perfeita continuidade com os seus antecessores. No entanto, este papa parece incomodar, mais do que os outros, a maioria das outras grandes potências do capitalismo mundial. Por quê?
Tornielli: Existe uma continuidade, não continuísmo: cada Papa é diferente de seu antecessor, e se sempre tivesse havido continuidade, hoje o Papa seria pescador no Mar da Galiléia. Dito isso, acho que Francisco incomode certos poderes financeiros, porque ilumina e repropõe páginas da Doutrina Social da Igreja, que tinham sido um pouco esquecidas.
ZENIT: Bergoglio foi acusado de “socialismo” e até mesmo de “leninismo”. As denúncias são feitas de boa-fé, são provocações ou considerações instrumentais?
Tornielli: Quem o chama de Leninista prova que nem conhece o Papa e nem Lenin. São acusações ásperas, grosseiras, daqueles que chamam de marxista a qualquer um que não venere o dogma da absoluta liberdade dos mercados financeiros, de acordo com o qual vivemos no melhor dos mundos possíveis. É surpreendente que aqueles que acusam Francisco fingem não ver as patologias de um sistema que, nas palavras do Papa, idolatra o dinheiro e não coloca o homem no centro. Tendo dificuldade em acreditar na boa fé de quem o chama de marxista ou de leninista. Outra coisa é, é claro, discutir algumas das declarações do Papa ou algumas páginas das suas homilias ou da Evangelii gaudium.
ZENIT: A doutrina social também aborda a questão dos migrantes: também aqui, o Papa é acusado de ser pró-imigração selvagem e até mesmo de favorecer, de forma mais ou menos consciente, o avanço do Islã…
Tornielli: A decisão de fazer a sua primeira viagem a Lampedusa, o abraço aos migrantes e refugiados que conseguem desembarcar, a oração por tantos mortos no mar, não tem nada a ver com a promoção da “imigração selvagem” nem com o avanço do Islã. Tem a ver com o rosto de uma Igreja que se dobra aos sofredores, que abraça esses nossos irmãos e que está lutando contra a globalização da indiferença, aprendendo a chorar por essas tragédias tentando comprometer-se para que não aconteçam mais. É principalmente uma questão de humanidade, antes de política.
ZENIT: Um aspecto recorrente na doutrina social do Papa Francisco é a atenção ao ambiente e ao cuidado com a criação, que serão objeto da próxima encíclica. Você acha que o Santo Padre vai reiterar de modo orgânico, princípios já expressados pelos seus antecessores ou, melhor, vai expressar conceitos também originais e surpreendentes?
Tornielli: Não tenho elementos para dizer o que vai conter a encíclica. Imagino que sendo o primeiro documento tão longo e meditado pelo magistério sobre o argumento haverá pontos originais. Na entrevista com Francisco publicada no final do livro, à pergunta sobre esse ponto, o Papa respondeu: “Até para a proteção da criação é necessário superar a cultura do desperdício. A criação é o dom que Deus deu ao homem para que a proteja, a cultive, sirva dela para o seu sustento e a entregue às gerações futuras. A vocação para cuidar é humana, antes que cristã, é responsabilidade de todos: é o cuidar a criação, a sua beleza, é o ter respeito por todas as criaturas de Deus pelo ambiente em que vivemos. Se falharmos nesta responsabilidade, se não cuidamos dos nossos irmãos e de toda a criação, chega a destruição. Infelizmente temos que constatar que cada época da história tem os seus “Herodes” que destroem, tramam projetos de morte, desfiguram o rosto do homem e da mulher, destroem a criação. O homem recebeu como dom – como observa Romano Guardini – esta “incultura” e transformou-a em cultura. Mas, quando o homem, em vez de guardião, sente-se patrão, tornar-se criador de uma segunda “incultura” e começam os passos para a destruição. Pensemos nas armas atômicas, na possibilidade de aniquilar em poucos instantes um número elevado de seres humanos. Pensemos também na manipulação da genética, na manipulação da vida, ou na teoria do gênero que não reconhece a ordem da criação. Pensemos no homem que restaura a Torre de Babel e que destrói a criação”.
ZENIT: Esta atenção tão forte do magistério do Papa Francisco para as questões sociais (pobreza, trabalho, imigração, meio ambiente) realmente significa, como alguns defendem, um redimensionamento dos temas morais (vida, sexualidade, família, educação), ou melhor, os dois aspectos estão intimamente relacionados?
Tornielli: O Papa reacendeu os holofotes sobre as questões sociais e é um fato que quantitativamente diminuíram as citações sobre algumas questões morais. Mas as palavras de Francisco para um ou para outro são inequívocas: a expressão “cultura do desperdício” é, de fato, associada tanto às vítimas do aborto e da eutanásia, quanto à exploração e desemprego.
ZENIT: As críticas ao Papa Francisco são difundidas – na verdade, especialmente – na Igreja: muitos católicos se sentem distantes do Papa, não só na economia, mas também em temas que vão desde a liturgia à teologia, até a moral familiar. É possível que as críticas de tipo sócio-econômicas estejam de alguma forma ligadas às críticas sobre os outros temas?
Tornielli: Não sei se somos muitos os católicos que nos sentimos “distantes” do Papa. Certamente existem resistências e as maiores resistências são internas. Há intelectuais que até o outro dia eram ultrapapistas e hoje são ferozmente críticos de Francisco (basta ler alguns blogs e jornais on-line para perceber). O problema é que o Papa não diz e não faz o que eles gostariam. Estão convencidos que o magistério social do Papa Bergóglio seja um dos verdadeiros pontos de fricção com certos mundos, ainda que midiaticamente funcionem muito mais certas discussões sobre alguns pontos da disciplina sacramental. Gostaria, porém, de recordar que a dissidência, mesmo dura, não é nova dentro da Igreja e que todos os últimos Papas têm sido atacados, também de forma feroz, durante o seu pontificado.