As memórias de um país que não é para crianças

Artigo publicado em “Valores, Ética e Responsabilidade” – ACEGE – 31 março 2016

 

Apresentado recentemente pela UNICEF, o relatório “No Place for Children” revela que, ao longo dos últimos cinco anos, a Síria já viu nascer quase 3 milhões de crianças. Ao invés de viverem num ambiente seguro e familiar, são (como todas as outras que nasceram poucos anos antes do início dos confrontos) obrigadas a trabalhar desde cedo, a combater na guerra e a fugir da morte, muitas vezes longe dos próprios pais. No entanto, e apesar das duras memórias, reconstruir a Síria com base na paz é o sonho da maioria
POR
MÁRIA POMBO

Após cinco anos de conflito, a Síria é um país desfeito e marcado pela violência. Apesar de terem perdido tudo nestes últimos tempos, muitos dos adultos que aqui nasceram e cresceram tiveram a oportunidade de conhecer um território saudável e de experienciar um quotidiano normal e pouco atribulado, antes da guerra: as famílias, em geral, viviam em casas seguras, e em diversas cidades havia avenidas com comércio e mesquitas ou outros lugares de culto. O acesso a bens de primeira necessidade e água potável não constituía um problema para a maioria.

Há cinco anos, tudo mudou e o país que estes homens e mulheres conheciam despedaçou-se e transformou-se num lugar onde reina a violência, a incerteza e a insegurança. E as crianças, onde ficam nesta história? O que pensarão os 3,7 milhões de crianças que já nasceram após o início do conflito? O que imaginarão aqueles cujos primeiros sons que ouviram podem ter sido bombas a explodir, que aprenderam as primeiras palavras em clima de sobressalto e deram os primeiros passos de vida em terrenos sinuosos?

De acordo com o relatório “No Place for Children”, emitido recentemente pela UNICEF e que aborda o impacto dos primeiros cinco anos de guerra na vida das crianças da Síria, estima-se que 2,9 milhões de crianças deste país e mais de 811 mil das nações vizinhas (Turquia, Líbano, Jordânia e Iraque) não conhecem nada mais para além de uma vida marcada pelo terror. Os números impressionam: desde o início do conflito, em 2011, mais de 15 mil crianças perdidas ou separadas dos pais já ultrapassaram as fronteiras da Síria, em carros ou a pé durante dias a fio, em busca de uma vida mais segura. E mais de 300 mil já nasceram na qualidade de refugiadas. Nos países vizinhos da Síria, o número de refugiados é actualmente dez vezes superior ao de 2012. Metade destas vítimas são crianças.

O mesmo relatório indica que, ao todo, existem pelo menos 8,4 milhões de crianças (o equivalente a mais de 80% da população infantil síria) actualmente afectadas pela guerra e a necessitar de ajuda, no interior do país ou em campos de refugiados. Aumentando de ano para ano, este valor traduz o número de crianças que não têm acesso a água potável nem a comida, nem tão pouco a uma casa ou a uma cama, ou a tempo para viver a infância de forma saudável e em família. As ruas e as escolas desta nação, outrora calmas e seguras, transformaram-se em locais perigosos e onde tudo pode acontecer e, num país que já foi auto-suficiente, há crianças a morrer por desnutrição severa.

Malak tem 7 anos, fugiu com a mãe para a Europa e gostava de ter consigo os seus amigos

A perda generalizada de emprego, que já afectou milhões de pessoas, tirou também a casa a muitas famílias que agora são obrigadas a viver em albergues. Contudo, o facto de quatro em cada cinco pessoas viverem actualmente na pobreza não fez abrandar o aumento abrupto e substancial dos preços praticados neste território. Só em 2015, o preço da maioria dos bens alimentares básicos aumentou para o dobro: um quilo de arroz, por exemplo, custa agora seis vezes mais do que custava antes da guerra. Adicionalmente, verificou-se uma redução acentuada da produção de frutas, legumes e cereais, provocada pela escassez de água resultante da destruição de infra-estruturas ou do seu corte deliberado, por parte dos grupos armados.

A água que é agora imprópria para consumo e as parcas condições de higiene originam consequências visíveis, como a existência e multiplicação de infecções e doenças, essencialmente entre os mais novos. No Verão de 2015, a água foi cortada pelo menos 40 vezes nas principais cidades da Síria, tendo esta acção afectado milhares de pessoas destas metrópoles. Dois terços das crianças sírias não têm, actualmente, acesso a água potável.

A poliomielite foi uma das mais assustadoras doenças infecciosas provocadas pela falta de água e higiene, tendo causado paralisia a 36 crianças entre 2011 e 2013, mas estando aparentemente extinta desde 2014. No entanto, o sarampo, a leishmaniose e a hepatite A continuam a surgir e a fazer vítimas na Síria, e têm sido conhecidos diversos casos de cólera em países vizinhos, de que é exemplo o Iraque. Os poucos hospitais e centros médicos que ainda funcionam não conseguem acolher e tratar tantos doentes.

As consequências de crescer muito antes do tempo

© UNICEF SYRIA/TARTOUS/2015/SAKER

Como se a privação de bens essenciais não bastasse, a maioria destas crianças é obrigada a trabalhar (muitas delas tendo apenas três anos) e a procurar sustento, a casar precocemente e a ter filhos quando o corpo e a personalidade ainda estão em desenvolvimento. Muitos jovens são também forçados a assumir funções como transporte de armas, vigilância em postos de controlo e tratamento de feridos, após recrutamento por grupos armados, longe dos próprios pais e sem o consentimento destes.

O documento da UNICEF indica que, inicialmente, a maioria dos miúdos recrutados eram rapazes entre os 15 e os 17 anos, mas desde 2014 são cada vez mais as crianças de tenra idade (algumas com sete anos) e também do sexo feminino aquelas que recebem treino militar e participam em combates, sendo muitas vezes forçadas a matar pessoas em execuções ou na qualidade de atiradores furtivos.

Adicionalmente, a UNICEF indica que entre 2011 e 2013 foram mortas mais de 10 mil crianças e que, só em 2015, foram registadas quase 1500 violações graves contra este grupo populacional, como assassinatos e mutilações (resultantes principalmente do uso de armas explosivas em zonas habitacionais), recrutamento e utilização de crianças no conflito, rapto, prisão e negação de apoio humanitário.

Yasmeen tem 12 anos e trabalha 10 horas por dia para ganhar seis dólares

Com a chegada dos ataques às suas casas, escolas, locais de entretenimento e até aos locais de culto, a violência tornou-se a maior certeza presente na vida destes miúdos e, de acordo com as organizações de saúde sírias, mais de metade das mortes prematuras nas áreas cercadas e sob ameaça foram de crianças com menos de 14 anos. As que sobrevivem têm agora de lidar com as consequências psicológicas desta experiência e “reaprender a viver como seres humanos”, como explica David Nott, um cirurgião que trabalhou na Síria.

O acesso à educação é outro dos (muitos) pesadelos que os sírios enfrentam. Ao todo, cerca de 2,8 milhões de crianças estão actualmente impedidas de frequentar a escola. Só em 2015 contaram-se 40 ataques a estabelecimentos de ensino e, desde o início do conflito, foram mais de 6 mil as escolas que ficaram impedidas de acolher alunos, quer por terem sido alvo de ataques, porque são actualmente utilizadas como albergues ou porque simplesmente viram fechadas as suas portas. Se as crianças não voltarem à escola, estima-se que a perda de capital humano corresponda a 10,7 mil milhões de dólares (o equivalente a um quinto do PIB da Síria no período pré-guerra).

Promover a educação nesta Síria devastada pelo terror tem sido um enorme desafio, e as primeiras metas são encontrar salas de aula suficientemente grandes e seguras para um tão elevado número de alunos e, por outro lado, conseguir, por parte de todos os candidatos, os documentos exigidos (e muitas vezes inexistentes) para a validação das matrículas. Nos países vizinhos da Síria, muitas crianças são matriculadas em escolas públicas e têm aulas em línguas que não conhecem, e muitos jovens são inscritos em turmas de alunos consideravelmente mais novos, tendo em conta que passaram vários anos sem acesso ao ensino. Adicionalmente, muitas crianças, principalmente raparigas, têm de percorrer estradas longas e onde impera a insegurança para poderem aprender a ler e a escrever.

Khaled tem 4 anos e dormia no seu quarto, em Aleppo, quando uma bomba deixou a sua casa a arder

Perante esta realidade desumana, várias têm sido as campanhas de solidariedade promovidas pela UNICEF e outras entidades. Ao longo destes cinco anos, o apoio a nível global tem vindo a crescer, quer em termos monetários quer no que respeita ao número de voluntários que se têm dirigido para os campos de refugiados e zonas fronteiriças para apoiarem estas vítimas. Desde 2011, a comunidade internacional já conseguiu doar mais de 11 mil milhões de dólares para apoiar famílias sírias.

Concentrando-se principalmente em questões de nutrição, vacinação, tratamento de doenças e higiene, a assistência humanitária já permitiu salvar muitas vidas e melhorar tantas outras. No entanto, a UNICEF caracteriza-a como um misto de frustração, persistência, trabalho de equipa e risco, avançando que ao todo já faleceram 85 trabalhadores da acção humanitária (contando-se 19 mortes desde Janeiro do presente ano).

© DR

Cinco pequenos (grandes) passos para a humanidade

Com foco na população infantil e juvenil, o relatório da UNICEF indica que é importante transmitir a estes grupos a ideia de que o futuro será melhor que o presente e que a guerra vai, um dia, dar lugar à paz que tanto ambicionam.

Obrigadas a crescer antes do tempo, estas crianças pertencem a uma geração tendencialmente perdida. No entanto, e apesar de tudo, reconstruir a Síria com base na paz é um sonho comum à maioria destas crianças e jovens, os quais pretendem também construir carreiras nas áreas da medicina, engenharia, educação e administração. Para isso, precisam de ter mentes fortes e limpas, corpos saudáveis e auto-confiança.

Com o objectivo de proteger esta geração de miúdos resistentes e cheios de sonhos, os autores deste documento apelam à comunidade internacional para que sejam tomadas cinco medidas. Demorando o tempo que for necessário, trata-se de apenas cinco passos de uma caminhada que deve começar o quanto antes, de modo a ajudar o maior número de pessoas.

Huda tinha 14 anos quando utilizou pela primeira vez uma arma que mal sabia manusear

Proteger as crianças, acabando com as violações dos seus direitos, é o primeiro passo e pretende garantir a segurança destes grupos enquanto a paz não é alcançada. Nesta medida, e com base no Direito Humanitário Internacional e na Lei Internacional dos Direitos Humanos, que todas as partes envolvidas no conflito devem respeitar, pretende-se impedir a existência de novos ataques à educação, à saúde e ao acesso a água potável, pondo-se fim às mortes, mutilações, detenções, tortura, violência sexual e recrutamento para as zonas de guerra.

Melhorar a ajuda humanitária no interior da Síria é o segundo passo proposto pela UNICEF. Neste sentido, importa garantir que todas as partes envolvidas no conflito cumprem as suas obrigações e permitem que as equipas de apoio cheguem a todo o território, principalmente às zonas de difícil acesso onde, para além de ser necessário entregar comida e outros mantimentos, existem doentes para tratar e feridos para socorrer.

Os irmãos Samir (13 anos), Abdulrahman (12 anos) e Mohammed (8 anos) usam o rap para inspirar outras crianças a seguir os seus sonhos

Investir na educação é outra das medidas em que a UNICEF, em conjunto com outras agências das Nações Unidas e diversas ONG, tem investido. Através da iniciativa “No Lost Generation”, esta organização pretende promover o ensino formal e informal das crianças do interior e dos arredores da Síria. Em 2016, o objectivo é assegurar um investimento de 1,4 mil milhões de dólares para apoiar cerca de 4 milhões de crianças.

A UNICEF acredita também que para se alcançar a paz duradoura é necessário restaurar a dignidade e proteger os direitos, neste caso das crianças sírias e independentemente do sítio onde estas se encontram. Desta forma, o quarto passo pretende promover uma sociedade saudável, com políticas sustentáveis de protecção que ajudem os mais novos a lidar com o stress, libertando-se da dor e das pesadas memórias que carregam.

Nuha tinha 11 anos quando viu o seu irmão a ser atingido por um morteiro

Por fim, esta agência das Nações Unidas apela a que sejam cumpridos os compromissos assumidos em matéria de financiamento. No início do presente ano, a UNICEF referiu que era necessário angariar 1,16 mil milhões de dólares para continuar a apoiar as crianças da Síria e países vizinhos, mas até ao momento apenas foi possível alcançar 6% desse valor.

Mohammed tem 13 anos e está refugiado na Turquia. Sem saber muito bem o que pensar acerca do futuro, assume sentir um misto de optimismo e desespero, afirmando que gostava que existisse na Terra um super-poder que lhe devolvesse tudo o que já perdeu. Como Mohammed, existem mais de 8 milhões de crianças e jovens no interior da Síria e nos campos de refugiados.


© DR

E se um dia precisarmos nós de embalar a trouxa e zarpar?

Com o objectivo de promover a empatia entre os jovens portugueses e aqueles que fogem da guerra da Síria e procuram apoio, a Plataforma de Apoio aos Refugiados (PAR), em conjunto com a Direcção Geral da Educação, o Alto Comissariado para as Migrações e o Conselho Nacional da Juventude, está a promover a campanha “E se fosse eu?”, junto das escolas portuguesas.

Com data marcada para o dia 6 de Abril, esta iniciativa pretende desafiar os alunos a levarem para a escola uma mochila com os bens que transportariam se precisassem de fugir da guerra e fossem obrigados a deixar tudo para trás. Esta é uma campanha de sensibilização para o acolhimento de refugiados inspirada no projecto “What’s In My Bag?”, promovido pelo International Rescue Committee, e pretende estimular a reflexão sobre aquilo que é realmente importante na vida e sobre aquilo que poderão sentir aqueles que foram, de facto, obrigados a fugir.

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