Acompanhar, discernir e integrar as situações irregulares: “a liberdade e a responsabilidade do bispo diocesano”

ACOMPANHAR, DISCERNIR E INTEGRAR AS SITUAÇÕES IRREGULARES: “A LIBERDADE E A RESPONSABILIDADE DO BISPO DIOCESANO” [1]

Fátima, 23/10/16 – 9,30h

O título da conferência que vou proferir foi-me encomendado pelo Sr. P. Mendes, assistente nacional do Secretariado de Pastoral Familiar. Compete-me desenvolvê-lo de maneira racional, dentro daquilo que se chama uma conferência.

A)     Lugar dos Bispos na missão da Igreja

1.Para começar, deve-se recordar a doutrina da Igreja sobre os Bispos que é geralmente ignorada. O Bispo de cada Diocese não o é por ser nomeado pelo Papa, ou pelo presidente da Conferência Episcopal, como acontece nas nomeações administrativas, embora também seja nomeado para o cargo após um processo administrativo.

 

O Concílio Vaticano II, definiu a sacramentalidade do Episcopado, o que quer dizer que o Bispo é tal, não em razão da nomeação jurídica ou administrativa, mas em razão do poder que lhe é conferido por Cristo ao receber, no grau do Episcopado, o sacramento da ordem.

Assim escreve a Constituição sobre a Igreja:

“Os Bispos regem, como vigários e legados de Cristo, as Igrejas particulares a eles confiadas, com os seus conselhos, exortações e exemplos e ainda com a sua autoridade e o seu poder sagrado (…) ordinário e imediato, ainda que o seu exercício seja regulado em última instância pela suprema autoridade da Igreja”,

(Lumen Gentium, 27)

            E mais adiante:

A eles está confiado plenamente o ofício pastoral isto é, a solicitude habitual e quotidiana pelas suas ovelhas, e não devem ser considerados como vigários dos romanos pontífices, já que estão revestidos de poder próprio, e são com toda a verdade, chefes dos povos que governam…”

(Ibidem)

Estas duas citações bastam para fundamentar o sub-título do tema que me compete desenvolver: a liberdade e a responsabilidade do Bispo diocesano.

Liberdade que como todas as liberdades é uma responsabilidade, um fardo e uma tarefa.

B)     A importância doutrinal dum documento sinodal

2.A exortação Amoris Laetitia, não é um documento conciliar, mas também não é uma encíclica. Mas é fruto dum sínodo da Igreja universal – a palavra sínodo significa caminhar em conjunto – como documento sinodal goza para toda a Igreja duma autoridade tal que não pode ser abandonada, de modo explícito, sem concomitante abandono da comunhão eclesial.

De facto entre Concílios é ao Sínodo que competem as grandes orientações da Igreja universal. Por isso as suas decisões ou talvez melhores orientações devem ser objecto de reflexão a aplicação de toda a Igreja.

Acresce ainda referir o fenómeno da forma que revestiu a preparação e a realização deste sínodo: trata-se da abertura à consulta a todos os fiéis sobre pontos que tinham estado antes sob tutela do magistério romano, sobretudo a questão sujeita a discussão, da modificação da disciplina no que diz respeito ao acesso aos sacramentos de pessoas divorciadas e recasadas.

Foi aberta portanto a possibilidade de consulta aos fiéis – numerosas conferências episcopais o fizeram e publicaram os resultados. Em segundo lugar tratou-se de abrir o debate sobre pontos reservados, como dissemos ao Magistério (pastoral dos divorciados recasados, recepção da Humanae Vitae, entre outros). Em terceiro lugar, há uma inovação quanto ao calendário do Sínodo, feito em duas sessões, separadas por um ano.

Esta maneira de proceder trouxe naturalmente ao de cima um pluralismo de situações concretas, que reflectem a situação real que vive o povo de Deus, espalhado pelo mundo e de que a Exortação Amoris Laetitia é um espelho. Pode por isso afirmar:

“Se se tem em conta a inumerável diversidade de situações concretas, como as que mencionamos antes, pode compreender-se que não deveria esperar-se do Sínodo ou desta Exortação uma nova normativa geral de tipo canónico, aplicável a todos os casos. Apenas tem cabimento um novo alento a um responsável discernimento pastoral dos casos particulares, que deveria reconhecer que, posto que “o grau de responsabilidade não é igual em todos os casos” (Relação final 51) as consequências ou efeitos duma norma não têm necessariamente ser sempre as mesmas. Os presbíteros têm a tarefa de acompanhar as pessoas interessadas no caminho do discernimento de acordo com o ensino da Igreja e as orientações do Bispo”.

            Amoris Laetitia, nº 100

 

 

C)      Um documento radicalmente pastoral

O amor humano vivido no Matrimónio como Alegria, apesar das ruinas e da morte inerentes a todo o humano, é a questão pastoral mais abrangente do Sínodo, é este, mesmo, o seu tema.

Trata-se de anunciar, preservar e difundir a alegria e a utopia do amor na família, em todos os seus aspectos: educação, fecundidade, espiritualidade.

De facto, o documento, na sequência do Sínodo, não teve como tema a doutrina do Matrimónio, menos ainda da fecundidade conjugal, mas do amor na família. Sem esta chave de leitura, a riqueza do documento fica truncada, abafada ou perdida em algum sectarismo.

E por isso o documento insiste no trabalho pastoral, qualquer que seja a sua incidência – dirigido aos casos regulares ou irregulares, no sentido do crescimento e maturidade dos dinamismos do amor humano, ciente de que é de tal ordem que ou cresce ou morre.

            AL   –  134

Este crescimento do amor humano é o princípio da estabilidade e do testemunho e representa o grande desafio que os casais e as famílias têm diante de si, pois o desafio começa por ser a própria natureza do amor humano. E por isso a Exortação adverte, logo no começo, que é necessário sair do campo movediço que se nutre do debate entre a ânsia desenfreada de mudança e a aplicação de normas gerais mais ou menos abstractas.

            AL , 2

Quando a Exortação aborda os caminhos pastorais para orientar a edificação de famílias sólidas, endossa a responsabilidade para as comunidades locais, recomendando que tenham em conta quer a doutrina da Igreja, quer as necessidades e desafios locais (AL 199) não sem reconhecer que os ministros ordenados carecem habitualmente de formação adequada para tratar dos complexos problemas actuais das famílias. (AL , 202).

Na Conferência dada em Roma em 8 de Abril passado para apresentar a Exortação sinodal, alguns casais presentes sublinharam, a justo título, a linguagem directa, simples e dirigida a todos e colocaram um acento especial na dimensão de caminhada, que o texto propunha em todas as situações.

A juntar a este aspecto, convém lembrar o contexto já presente na Evangelii Gaudium, a saber o dum mundo, onde, após dois mil anos, Jesus voltou a ser um desconhecido, como é o mundo ocidental: “Convém sermos realistas e não presumirmos que os nossos interlocutores conhecem todo o pano de fundo daquilo que dizemos, ou que são capazes de relacionar o nosso discurso com o núcleo essencial do Evangelho, que lhe confere sentido, beleza e fascínio”

            EG, 34

Convém de facto insistir que o próprio texto sinodal, a partir do seu estilo exige uma espécie de conversão da nossa linguagem que não consiste em mudar a doutrina – embora convenha tê-la actualizada – mas em encontrar a linguagem e os sinais adequados às pessoas que temos diante de nós.

Sendo a linguagem da Exortação eminentemente narrativa, o texto que daí resulta é poliédrico e esta característica enriquece a qualidade e o estilo pastorais do texto. Esta radicalidade pastoral mais ressalta se compararmos as propostas de votações que constam da relação final do Sínodo e a fidelidade do texto da Exortação, o primeiro de 24 de Outubro de 2015 e o segundo de 19 de Março de 2016.

Ao compararmos calmamente os dois textos, mais ordenado o da relação final, mais prolixo o da Exortação, não podemos deixar de realçar que nas questões que exigem um especial cuidado pastoral, que têm a ver com aquilo que a Exortação chama de situações de “fragilidade”, a saber os números que do 69 ao 76, obtiveram a seguinte votação:

            Nº 68           —   236 placet           21 non placet

                 70                   213                       47

                 71                   218                       42

                 72                   229                       29

                 73                   236                       24

                 74                   223                       36

                 75                   205                       52

                 76                   221                       37

É ainda importante verificar, na votação final, a votação dos números 77 a 87. Os números 68-70 não obtiveram maioria de 2/3 mas quase. Ou seja as votações inodais obtiveram um enorme consenso.

D)     Tarefas no que toca ao discernimento e proximidade compassiva

Na apresentação do texto sinodal, a 8 de Abril, já referida, o secretário geral do Sínodo, cardeal Lorenzo Baldisseri, ressaltou a importância do discernimento casa a caso no caso das famílias em situação “irregular”. E acrescentou: “este discernimento faz-se com as pessoas envolvidas, o sacerdote e a Igreja. É um trabalho de direcção espiritual. O que interessa é o discernimento e a integridade das pessoas que necessitam amadurecimento da consciência e a relação com a Igreja”.

Está aqui definido, a meu ver, o programa, o método e a forma. E mesmo os actores.

Efectivamente uma leitura ainda que superficial desta Exortação, nota uma evolução na tradição da Igreja, sobretudo nas passagens em que o documento se refere ao acompanhamento das pessoas em situações, chamemos-lhe “irregulares”. O documento assume substancialmente aquilo que os membros do Sínodo, sempre por maioria qualificada de dois terços, à excepção, creio, de três propostas, propuseram. Nesse sentido a Exortação reflecte uma ampla partilha e uma honesta atitude colegial, que ninguém, seriamente, pode pôr em causa.

A situação ou situações apresentadas tinham já sido objecto duma primeira abordagem na Familiaris consortio de João Paulo II (1981), mas o actual texto vai muito mais longe.

O discernimento apontado recorre, para a questão da consciência individual e segundo o secretário geral do Sínodo “é um trabalho de direcção espiritual”. Devo dizer a título pessoal que não vejo, nas Dioceses muitas pessoas capazes deste trabalho de direcção espiritual, mas voltarei ao assunto.

É aos sacerdotes que compete este trabalho de discernimento, segundo a doutrina da Igreja e as orientações do Bispo, reza o nº 300 da Exortação, o que supõe que haja algumas orientações do Bispo, cuja competência é ordinária e alguns sacerdotes delegados para o efeito, pois, na minha modesta opinião, poucos sacerdotes possuem as qualidades e o saber e o estilo de direcção espiritual para este tipo de discernimento

Contrariamente ao que acontecia no passado, a Exortação não coloca limites à integração. Mais ainda declara que em algumas circunstâncias a imputabilidade e responsabilidade de um acto podem ser diminuídas ou anuladas, isto é traça linhas de discernimento, psicológicas e morais, que elas mesmas deveriam fazer objecto dum estudo à parte, a saber:

            – a imaturidade afectiva;

            – a força dos hábitos contraídos;

            – o estado de angústia e outros factores psíquicos e sociais.   

                        AL, 302

Há, todavia, no texto sinodal, uma espécie de reserva de atitude da pessoa ou pessoas que fazem este caminho, que é importante e honesto intelectualmente lembrar: o documento lembra que nesta caminhada não se poderá prescindir da verdade na caridade do Evangelho proposto pela Igreja e para que isto suceda “devem garantir-se condições necessárias de humildade, reserva e amor à Igreja e ao seu ensino, na busca da sincera vontade de Deus, com o desejo de alcançar a resposta mais perfeita”.

            AL, 300 – Relação final 186

Na minha opinião isto quer dizer que há uma meta que é a integração na comunidade cristã que essa meta nada tem a ver com afirmações individualistas, quer elas venham dos casais em causa, quer de algum sacerdote iluminado. Trata-se sempre de aderir ao Evangelho e caminhar na senda da maturidade cristã.

O que não impede que se tenha em conta neste discernimento que “por causa dos condicionalismos ou circunstâncias atenuantes é possível que uma pessoa, numa situação objectiva de pecado – mas que subjectivamente o não seja – possa viver na graça de Deus, possa amar e crescer na vida da graça e da caridade, recebendo para isso ajuda da Igreja”.

            AL, 305

Em certos casos, diz-se em nota, poderia haver também ajuda dos sacramentos. Por isso, se lembra “aos sacerdotes que o confessionário não deve ser uma câmara de tortura, mas o lugar da misericórdia do Senhor”…

            (AL p. 268).

E a Exortação aconselho, que “o ensino da Teologia Moral não deveria deixar de incorporar estas considerações (…) particularmente o primado da caridade, como proposta à iniciativa gratuita do amor de Deus. Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e de significação real…”

            AL, 312

As afirmações reiteradas da Exortação ao papel da consciência que é sempre pessoal, o lugar dado ao acolhimento particular de cada caso, leva-nos a pensar que só podem se destacadas para esta função pessoas com forte formação psicológica e teológica, maturidade afectiva, habituadas à prática e ao aconselhamento espiritual.

Como escreve a Exortação os pastores que fazem o discernimento “não podem sentir-se satisfeitos, aplicando leis morais a quem vive em situações “irregulares”, como se fossem calhaus que atiram sobre a vida das pessoas. É o caso dos corações fechados que costumam esconder-se por detrás do ensino da Igreja “para sentar-se na cadeira de Moisés” e julgar, às vezes com superioridade e superficialidade os casos difíceis e as famílias feridas”.      

            AL 305 – Discurso no final da XIV Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos

   (24-10-2015) Osservatore  Romano, ed, espanhola, 30/10/2015, p. 46

Serão todos os presbíteros capazes de fazer este discernimento e esta integração? Terão tempo e disponibilidade para o fazer?

Na minha modesta opinião cada Diocese ou grupo de Dioceses – pois duvido que algumas dioceses tenham pessoas disponíveis para o fazer – deveria constituir-se uma pequena equipa, dentro do Secretariado Diocesano de Pastoral da Família, para acolhimento destas situações a que a Exortação alude e a que chama, genericamente “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”.

           

AL, 291-312

 

Bom seria que as Conferências Episcopais ou ao menos alguns Bispos em particular, avançassem com esta iniciativa, colocando nesta equipa, pessoas sábias e maduras, capazes de acompanhamento, acolhimento e discernimento.

São necessários, de facto, pastores que tenham em conta que “não raro a tarefa da Igreja se assemelha a um hospital de campanha”.

 

            AL 252

 

 

 

E)      Critérios de discernimento, Lei da gradualidade e centralidade da consciência.

 

Como disse atrás, as situações morais em que se encontram alguns casais perante a lei e a culpa numa perspectiva de misericórdia exigiram um texto à parte. Não é esse o meu propósito. Basta-me anotar o que diz a Exortação: “A partir do peso dos condicionamentos concretos, escreve a Exortação, podemos acrescentar que a consciência das pessoas deve ser mais incorporada na práxis da Igreja em algumas situações que não realizam objectivamente a nossa condição do Matrimónio”

           

AL 303

 

Este ponto é fulcral na Exortação: a atribuição à consciência”, o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade de seu ser”, como escreve a constituição conciliar Gaudium et Spes (16=AL 222), lugar insubstituível da rectidão do agir moral.

Esse discernimento não é individualista, deve ser plasmado em confronto com o sentido da verdade e do caminho na descoberta do sentido evangélico. E por aí não cai na chamada gradualidade da lei.

Mas abre a uma gradualidade da graça, dentro daquilo que poderíamos chamar a dialéctica paulina da lei e da graça. Isto é a Exortação tem elementos suficientes para pensarmos que mesmo estando fora da lei, nem sempre se está fora da graça, o que torna possível um aprofundamento das exigências do Evangelho (AL, 38). Isto é, não é a situação concreta que faz a lei, o que significaria o relativismo moral, mas a situação de abertura ao Evangelho que liberta para a graça.

Como diz o passo do Evangelho quando Jesus não condena, mas liberta para a graça numa situação concreta, a da samaritana, por exemplo.

A lei da gradualidade significa então, a abertura a uma progressividade em conhecer e desejar fazer o bem, “pois tender à plenitude da vida cristã não significa fazer aquilo que em abstracto é mais perfeito, mas aquilo que concretamente é possível”

            – Conferência Episcopal Italiana, Catechismo degli adulti, 919

 

De facto é esta a genuína tradição da Igreja, que nos começos, se viu confrontada quase com um cisma entre Roma e Cartago, por causa do perdão dado aos lapsi em Roma, contra o rigorismo da Igreja de Cartago, chefiada por S. Cipriano. Diante do rigorismo dos donatistas em África nos sécs. IV e V Sto Agostinho, defende uma Igreja de justos e pecadores. O mesmo acontece na crise jansenistas já no séc. XVII.

A Igreja sempre recusou uma Igreja de puros, contra uma Igreja de impuros, mas segundo a bela expressão de Santo Agostinho a Igreja é um reticulum mixtum, ou seja uma rede mista de justos e pecadores.

A Exortação manifesta compreensão por aqueles que “preferem uma pastoral mais rígida que não desse lugar a confusão nenhuma” (AL, 308), mas não é esse o caminho sinodal.

 

 

 

Conclusão

 

Como escreve a Exortação citando o mandamento do amor em Mat. 22,30, e o sentido transcendente do amor segundo S. Paulo (1. Cor.7,29-31), o que necessitamos recuperar é o sentido último da nossa existência e a esta luz, o caminho que cada casal está a fazer. A esta luz nenhuma família é uma realidade perfeita, mas todas estão a caminho.

 

A tarefa a que o Sínodo convoca a Igreja sobretudo relativamente às famílias em situação “irregular”, mas também às outras, não raro vítimas dos bloqueamentos da lei e não da libertação da graça, é imenso.

 

            Dá que pensar. Deveria dar.

            E que fazer.

 

Arnaldo de Pinho



[1] Utilizarei a tradução castelhana da Exortação Apostólica Amoris Laetitia (AL). Para o lugar das Igreja locais, ou Dioceses cf. J.M. Tillard, Iglesia local, eclesiologia de communio y catolicidade (Salamanca 1999)

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