A Alegria de ser Família

D. António Moiteiro Ramos, a propósito da preparação do Sínodo da Família, fala à FAMÍLIA CRISTÃ sobre a alegria da família à luz da Evangelii gaudium (EG), os deveres dos pais na educação dos filhos e o que a Igreja deve fazer com os pais em situação difícil.

É necessário um esforço paciente para aprender a apreciar as múltiplas alegrias humanas que o Criador coloca no nosso caminho: a alegria da existência e da vida; a alegria do amor honesto e santificado; a alegria tranquilizadora da natureza e do silêncio; a alegria, por vezes austera, do trabalho bem realizado; a alegria e a satisfação do dever cumprido; a alegria transparente de um coração puro, do serviço e do saber partilhar; a alegria exigente do sacrifício. O cristão poderá purificá-las, completá-las e sublimá-las. A alegria cristã supõe um homem (uma família) capaz de alegrias naturais. Frequentemente, foi a partir destas que Cristo anunciou o Reino dos Céus.

Estas palavras da Exortação Apostólica Alegrai-vos no Senhor (Gaudete in Domino), do Papa Paulo VI, publicada no Ano Santo de 1975, estão na linha daquilo que o Papa Francisco escreveu recentemente: “A Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira dos que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertos do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria.” (EG, nº 1)

O catecismo que aprendemos em crianças ensinou-nos que a alegria é fruto da presença do Espírito Santo em nós (cf. Gl 5, 22-23) e, na sua base, está a virtude teologal da esperança, enquanto desejamos e esperamos de Deus a vida eterna como nossa felicidade, colocando a nossa confiança nas promessas de Cristo e apoiando-nos na ajuda da graça do mesmo Espírito para merecê-la e perseverar até ao fim da nossa vida. Perante os desafios que se colocam hoje às famílias, onde podemos encontrar a fonte da sua alegria?

Na entrega suprema do amor que se realiza na cruz, podemos reconhecer a revelação do Deus Amor. É aí que “o mais belo dos filhos dos homens” (Sl 44,3) se oferece como “homem das dores… frente ao qual todos cobrem o rosto” (Is 53,3). A Beleza é o Amor crucificado, revelação do coração divino que ama: do Pai, fonte de todos os dons, do Filho, entregue à morte por nosso amor, do Espírito, que une Pai e Filho e é derramado sobre a humanidade.

A família tem hoje, tal como nas gerações anteriores, um papel insubstituível na educação dos filhos. Ela é a Igreja doméstica, tal como no-la apresenta o Concílio Vaticano II, a comunidade cristã de referência, na qual os pais devem ser os primeiros e mais importantes catequistas dos seus filhos. O ambiente familiar, onde os pais vivem e testemunham a sua fé em Cristo ressuscitado, deve ser o espaço privilegiado da educação na fé.

Os pais devem ser exemplo de fé para os filhos e para se converterem em bons crentes têm de ser bons orantes. Não é possível dialogar com um Deus sempre invisível, e hoje menos evidente na vida das nossas famílias, se não se vive da contemplação. A atitude contemplativa é, hoje, elemento constitutivo da identidade cristã. A novidade da pregação cristã radica na qualidade de vida que leve o evangelizado a uma experiência nova do Deus vivo. O ministro do Evangelho, neste caso os pais, que não tenha o Evangelho no seu coração, objecto da sua contemplação e motivo de oração, não o conseguirá manter na sua boca como acção missionária, em ordem a educar os seus filhos na fé. A felicidade de uma família só existe quando há comunhão entre os esposos com os filhos e também com Deus.

Entre os pressupostos que enfraquecem e não dignificam a família tal como Deus a projectou, olhando a realidade circundante, constatamos um aumento de separações/divórcios, e cujos cônjuges contraem nova união, uniões de facto, católicos unidos apenas em casamento civil – modelos de famílias com que nos deparamos e que nos devem levar a pensar e repensar a realidade e formas de atuar, nomeadamente quando há vínculos que ainda os ligam à suposta alegria de ser família em Igreja: pedido dos sacramentos, envio dos filhos à catequese…

Para muitos pais torna-se difícil ver algum raio de esperança face à situação em que se encontram muitas famílias, mas a todos os que recordam com nostalgia o passado e as coisas que já não existem, convém recordar o que, vários séculos antes de Cristo, Isaías disse aos seus concidadãos em momentos de desolação e de mudanças irreversíveis: “Não vos lembreis dos acontecimentos de outrora, não penseis mais no passado, pois vou realizar algo de novo, que já está a aparecer: não o notais? Vou abrir um caminho no deserto, e fazer correr rios na estepe.” (Is 43,18-19)

Qual a atitude a ter para com todos aqueles que não constituíram família nos moldes em que Deus a projectou, é uma questão que nos deve interrogar.

Alguns passos se têm dado neste sentido, contudo, é imprescindível que as famílias cristãs sejam instrumento e incentivo à evangelização da família pela própria família. É fundamental a valorização do Sacramento do Matrimónio, da família e da vida, com toda a sua envolvência; criar espaços de formação com momentos celebrativos de encontro, em ordem à humanização e dignificação da realidade familiar.

Mais do que incrementar a tensão que já se vive no âmago de muitas famílias, acolher, respeitar, compreender, integrar e ajudar são gestos que a diocese, as paróquias não podem descurar – daí a necessidade de criar e revitalizar movimentos e grupos que se prendem fundamentalmente com os sectores da pastoral familiar, vocacional e juvenil. Integrar estas famílias na vida eclesial e social, respeitando os seus valores culturais e religiosos, será um passo significativo para que o amor de Deus possa reinar nos seus corações individual e comunitariamente, sempre confiados na esperança da fé que tudo vence.

Sem me prender a estatísticas relativas a esta questão, quero terminar, aludindo à necessidade de, como Igreja que somos, tomarmos consciência desta realidade, sem nos adaptarmos a ela, mostrando a capacidade de acolher, ajudar a crescer e a discernir.

A família é a verdadeira fonte e berço da civilização do amor, por sua vez, a esperança é a fonte da alegria das nossas famílias. Compete, pois, à comunidade cristã, a iniciação neste processo experiencial e de comunicação vital que leva ao desenvolvimento de relações interpessoais sadias e a todos poderá congregar em família.

Sermos Igreja com portas abertas é o desafio que lança o Papa Francisco à nossa pastoral familiar e de iniciação cristã: “Se alguém quiser seguir uma moção do Espírito e se aproximar à procura de Deus, não esbarrará com a frieza de uma porta fechada. Mas há outras portas que também não se devem fechar: todos podem participar de algum modo na vida eclesial, todos podem fazer parte da comunidade, e nem sequer as portas dos sacramentos se deveriam fechar por uma qualquer razão. (…) A Igreja é a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fatigante. (EG, nº 47)

 (Artigo de D. António Moiteiro Ramos, bispo auxiliar de Braga, publicado em Família Cristã, Maio 2014)

Scroll to Top