Reorganizar a vida da Igreja em chave familiar

Entrevista de Ricardo Perna a D. Manuel Clemente, publicada em Família Cristã, outubro de 2015

 

D. Manuel Clemente, Cardeal-Patriarca de Lisboa, será um dos representantes da Igreja portuguesa no sínodo dos bispos que irá decorrer em Roma de 4 a 25 de outubro. Revelando que vai pedir «uma reorganização da vida da Igreja em chave familiar» aos padres sinodais, mostra-se confiante no caminho que a igreja está a traçar. No que diz respeito às situações irregulares em que estão alguns cristãos, revela o que «já se faz [na Igreja]» e que «quem está dentro da vida da Igreja sabe». «A proposta geral [da Igreja] é a que é. A apreciação caso a caso das circunstâncias faz-se a outro nível, mais pessoal e interpessoal», e aí pode haver diferenças na forma de lidar com cada caso, «com certeza».

 

Este vai ser um sínodo diferente do anterior?

Esta assembleia sinodal, e é bom que se tenha isso em conta, é distinta da anterior, que era sobre os desafios à família. Esta será sobre a missão da família na Igreja e na sociedade. Será muito mais projectiva, já que não se pode dizer muito mais sobre o que se disse no ano passado.

Agora, neste contexto vamos ver o que esperamos das famílias, dentro da visão cristã da família, que é aquela em que Jesus Se apresenta, não nos vão pedir outra, que não somos a ONU, somos a Igreja Católica. E é bom insistir nisto, porque parece que às vezes há uma certa expectativa algo despistada. Esperam que a Igreja apresente uma linha de atuação da família que não tenha em conta aquilo que a define e valida como Igreja, que é a proposta que está. Naturalmente que tem de ser aprofundada, actualizada e aplicada com aquilo que é de hoje, mas é a proposta que está.

 

Quais são as preocupações que a Igreja portuguesa vai levar ao sínodo?

Em primeiro lugar, a necessidade de preparar e de acompanhar, ao longo da vida, as famílias cristãs. Levar por diante um processo matrimonial, paternal e agora com avós, à luz do Evangelho, tem de ser preparado, consciencializado, e tem de ser acompanhado. Não pode ficar reduzido a uns meses antes, em que aparece um casal que se quer casar, faz-se um curso de preparação para o matrimónio com meia dúzia, ou às vezes nem isso, e pronto, “estão casados, agora aguentem-se”, para falar mal e depressa. Não é isto. Trata-se de algo tão importante na ordem sacramental, em que o próprio Deus está incluído, que requer muita consciência, muita preparação e muito acompanhamento. Porque uma vida tem crises a ultrapassar e a superar, e sozinhos é muito difícil, para não dizer impossível. A grande questão que se põe é como é que nós, comunidades cristãs, vamos, nas nossas famílias, paróquias, comunidades e movimentos, preparar e apoiar o matrimónio cristão.

 

É isso que vai dizer à assembleia sinodal?

A minha intervenção vai ser no sentido de uma reorganização da vida cristã em chave familiar. Isto é importante para a Igreja, que nem sempre vive assim. Mesmo em casos de militância, falamos do homem ou da mulher, mas não sabemos se é casado, se é viúvo, se tem filhos… há aqui uma relação familiar que tem de estar muito mais presente na comunidade cristã, para que ela seja, como já pedia o Papa João Paulo II, uma família de famílias, e não em termos individuais. E se a Igreja conseguir avançar para uma organização em chave familiar, isto pode ser um grande estímulo para a sociedade, que também não vive assim.

 

E como é que conseguiríamos organizar a Igreja e a sociedade em chave familiar?

Bom, começamos pela Igreja, que é aquilo que nos compete. De resto, participamos como cidadãos. No que diz respeito à Igreja… bom, pelo exemplo é mais fácil. Olhamos para uma paróquia e dizemos que tem 2 ou 3 mil praticantes dominicais, e fazemos censos e estatísticas. Não é muito mais interessante dizer “eu nesta paróquia tenho 253 famílias”, em vez do número de indivíduos? Em que a base e a estruturação, a vida sacramental, o baptismo dos filhos que já provieram do matrimónio dos pais, a iniciação cristã, conta muito mais com a base familiar do que com a abstracção individual. E aqui toca-se um ponto doutrinal: nós somos cristãos porquê? Como todos os religiosos, acreditamos em Deus, certo. Não estamos cá por acaso nem sozinhos, acreditamos que alguém nos precede e nos espera, como as pessoas de todas as religiões. Mas isto é ser religioso, no sentido de estar ligado a Deus. Mas ser cristão é outra coisa: é dentro deste fundo comum, que compartilhamos com todas as pessoas crentes, que nós situamos a nossa relação com Deus na pessoa de Jesus Cristo. E eu disse pessoa, não indivíduo. Porque Jesus teve mãe, um pai adoptivo, parentes que são referenciados no Evangelho. Jesus vive 30 anos em contexto familiar e de trabalho, numa terra, com vizinhos. Nós não falamos em abstracções. Quando um cristão pensa em Deus e em como Deus Se revela, pensa numa família, que foi a família de Nazaré, que aliás foi emigrante à força no Egito. Pensamos na carpintaria de Nazaré, naquele contexto local em que foi bem recebido umas vezes e outras não. Pensamos na sinagoga, pois Jesus era um judeu praticante e não ia à Missa ao domingo, mas sim à sinagoga ao sábado. Há um contexto local, familiar, de vizinhança, que nós cristãos acreditamos que é a própria revelação de Deus. E por isso a família não é algo acessório. E podemos e devemos dizer mais. Quando Jesus sai de Nazaré para inaugurar aquela novo Reino que todos esperavam e que os profetas tinham prometido, como que sublima e transpõe para outro nível a familiaridade que tinha vivido. Não é uma familiaridade de sangue, é uma familiaridade que se refere a uma paternidade mais alta, que é a paternidade de Deus, mas alargando ao grupo aquilo que Ele próprio tinha aprendido e treinado na sua vida de família. Sabemos bem que é assim. Eu trabalhei 25 anos na formação de sacerdotes, e os meus colegas que trabalham também nas realidades desse género sabem muito bem que essas fraternidades espirituais ou religiosas devem muito à experiência que os seus membros tiveram ou não da sua família.

 

Mas se sabemos assim tão bem, porque é que ainda não vivemos nessa chave familiar?

Temos de viver mais, temos de ser operativos e viver mais. Mas julgo que é porque ainda somos subsidiários dessas abstracções. Pensamos em indivíduos mais ou menos sem relação ou pensamos em massas. Mas essa não é a maneira evangélica de pensar as coisas, não foi essa a Revelação cristã. E mais! Lemos os textos do Novo Testamento, que dizem respeito às primeiras comunidades cristãs, e verificamos que elas também têm chave familiar. É muito interessante ver São Paulo dizer que baptizou a casa de fulano, a família de fulano. A primeira referência de Paulo à Europa é à família de Lídia, que ele encontrou e foi a sua casa. Quando Paulo fala a Timóteo, não lhe fala da fé, diz-lhe «Não te esqueças da fé: que recebeste da tua mãe Eunice e da tua avó Loide». Não podia haver igrejas, como temos agora, e a comunidade funcionava em casa deste e daquele.

 

Este motu próprio sobre a nulidade matrimonial vem colocar mais responsabilidade sobre os ombros dos bispos, com a criação do processo breve. O que é que traz de novo?

Na linha de coisas que tinham sido pedidas e insistidas na última assembleia sinodal, que se facilite o que pode ser facilitado. Atenção que o sacramento é uma coisa séria, e portanto quando de uma maneira consciente, responsável e livre um homem e uma mulher se aceitam como esposos perante Deus, nós, Igreja, não temos qualquer espécie de poder ou de autoridade para interferir. Agora o que podemos e devemos é não só preparar esse momento, e daí a tal aplicação muito maior na formação para o matrimónio cristão, para as pessoas perceberem do que se trata e tenham uma base experimental onde isso possa assentar, e depois verificar se isso aconteceu assim.

 

Muitos bispos não têm formação em Direito Canónico, mas o Papa pede que sejam eles a julgar estas situações. Não tem receio que isto possa vulgarizar a declaração de nulidade e criar quase um divórcio religioso?

Isso, meu amigo, nisto como em todos os casos, é a consciência que cada um tem ou não tem. Se estamos a tratar de algo tão sério como é a vida sacramental para aqueles que a querem seguir, contamos com a seriedade de consciência de quem realiza o ato sacramental e de quem o acompanha e avalia. Se faltar a esta base, em relação a isto e a tudo… vamos acreditar que tudo seja feito com seriedade, e vamos exigir essa seriedade.

 

Acredita que isto possa resolver parte significativa dos casos existentes de divorciados recasados, que sofrem por não poderem comungar ou confessar-se?

Eu aí nem preciso de achar, porque basta o número de pedidos de verificação da nulidade do alegado casamento que se dão e vermos que o número de casos é grandíssimo. Até por uma certa experiência empírica de ouvirmos os casos e ouvirmos como é que as pessoas pretensamente se casaram. Infelizmente é assim…

 

Quanto aos outros, muitos dos defensores de uma maior abertura para com as pessoas em situações irregulares têm-se socorrido de declarações do Papa em que ele pede uma maior abertura para dizer que ele vai mudar tudo. Mas acolher essas pessoas significa aceitar as suas situações?

O acolhimento refere-se às pessoas. Cada baptizado tem o seu lugar nesta casa da família dos filhos de Deus. No que diz respeito à prática sacramental, temos de a entender como um todo, pois os sacramentos não vivem independentes uns dos outros. Pelo Batismo entra-se em casa. Em relação aos outros sacramentos significa estar cá de corpo e alma inteira. Mas enfim, mesmo não estando nós em condições dessa vida sacramental plena, estamos sempre em condições para uma vida sacramental a que o nosso estado de baptizado nos habilita.

 

Não depreende, portanto, das palavras do Papa que ele está a declarar que vai aceitar essas situações irregulares dentro da Igreja?

Com certeza que não. Mas não devemos fazer avaliações subjectivas, e a situação, não sendo a que propomos, é a que existe, e a pessoa está antes, durante e depois de tudo isso.

 

Acha possível que a doutrina se aprofunde para permitir que, em casos pontuais, em situações em que o cônjuge é abandonado e o parceiro não deixa qualquer solução de reconciliação se possa olhar caso a caso e não com a regra geral para todos?

A Igreja, em toda a sua moral e aplicação moral, inclusive na vida sacramental, já faz esse raciocínio. A proposta geral é a que é. A apreciação caso a caso das circunstâncias faz-se a outro nível, mais pessoal e interpessoal, porque é aí que se deve fazer…

 

E aí é possível estabelecer diferenças para as situações que são diferentes?

Isso com certeza.

 

E adequando as coisas a cada pessoa e cada caso?

Isso é o que já acontece, e quem está dentro da vida da Igreja sabe que é isso que se faz.

 

Mas muitos casais que chegam à preparação imediata não vêm nessas condições… Deve essa preparação imediata ser mais exigente no sentido de acompanhar os casais?

Tornar as coisas claras, para os casais saberem ao que se estão a comprometer, sacramentalmente, envolvendo o próprio Deus nesse ato, com certeza. Agora estas são as disposições gerais, e depois temos o caso a caso, em que há pessoas que aprendem mais depressa que outras. Há uma meta a atingir, mas depois temos de ver caso a caso.

 

Mas há paróquias que têm apenas um encontro, ou nenhum, e depois…

 E depois, o depois é que é importante. Saber como se sustenta a vida matrimonial. Por exemplo, há bocadinho, quando falávamos da reorganização comunitária em chave familiar. Nós reparamos que muitas das nossas celebrações dão uma importância muito grande ao sufrágio dos defuntos, “missa por alma”, como se diz. Damos igual relevo às comemorações matrimoniais? E nem precisamos de esperar pelos 25 anos, fazem dois, fazem três… damos suficiente relevo ao compromisso matrimonial na nossa vida paroquial? É algo que parece simples, mas é muito importante. Eu conheço párocos que, todos os anos, tendo as direcções dos casais, enviam uma felicitação a quem faz anos de matrimónio. Coisas simples, mas que dão à vida matrimonial um acompanhamento e uma atenção como deve ser.

 

Coincidência ou não, começam a aparecer medidas mais efectivas de apoio à natalidade em Portugal, e este ano o número de nascimentos parece estar em curva ascendente, como não se via há uns anos. Estamos a preocupar-nos mais com a família?

 Esse é um movimento no qual devemos estar todos atentos e ativos. O Matrimónio, mesmo que não seja sacramental, não é um exclusivo cristão. Nós colocamos a pessoa de Jesus Cristo no seu centro. São Paulo diz que quem casa, casa-se no Senhor, e isto tem uma envolvência. Há muita inspiração cristã na sociedade portuguesa, e esse é um dos pontos em que fazemos o reconhecimento feliz que há incidência.

 

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