Carta do Cardeal Kevin Farrell, Prefeito do Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, dirigida às famílias de todo o mundo.

19 de março de 2020

Família

Uma proposta concreta para ser “igreja doméstica”

 

«A presença do Senhor habita na família real e concreta, com todos os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos diários» (Amoris Laetitia 315).

Na Igreja, temos um tesouro escondido: a família. O Senhor acompanhou sempre todas as crises do seu povo com mensagens extraordinárias e parece fazê-lo também perante esta pandemia, que nos constringe a todos a um retiro forçado em nossas casas. As celebrações estão suspensas, muitas igrejas estão fechadas e é arriscado deslocarmo-nos a elas. Sentimo-nos sozinhos, isolados e é precisamente neste isolamento que o Espírito nos sugere de redescobrir o sacramento do matrimónio, em virtude do qual as nossas casas, devido à presença constante de Cristo no relacionamento consagrado dos esposos, são uma pequena Igreja doméstica.

De facto, nas suas casas, os esposos garantem a presença de Jesus vinte e quatro horas por dia. Uma verdade que o Papa Francisco sublinha em Amoris Laetitia no n. 67: «Cristo Senhor, “vem ao encontro dos esposos cristãos com o sacramento do matrimónio” e permanece com eles». Jesus não se vai embora, mas permanece com os esposos e está presente na sua casa, não apenas quando estão reunidos e rezam, mas em todos os momentos.

Em virtude desta realidade, podemos fazer frutificar este tempo particular como o tempo em que cada família cristã poderá redescobrir aquilo que é: manifestação genuína do mistério, que é a Igreja como corpo de Cristo. De facto, os esposos «edificam o Corpo de Cristo e constituem uma igreja doméstica» (Amoris Laetitia 67). Cada família é uma parte essencial deste corpo, que se constrói a partir de pequenos gestos diários, onde Jesus está estavelmente presente.

É um tempo de treino, este que o Senhor nos está a oferecer, à espera de derrotar este mal. Um tempo em que, ficando juntos nas nossas casas, somos chamados a realizar contínuos exercícios de caridade. Quantas vezes por dia, nestas horas, o Senhor nos dá a oportunidade de olhar para nossos filhos com ternura, com paciência amorosa o nosso cônjuge; de moderar o tom da voz, mesmo se à nossa volta reina uma desordem inesperada, de educar os nossos filhos ao bom uso deste tempo dilatado em casa, que parece nunca mais passar; de educá-los para um diálogo feito de escuta dada ao outro, de calma interior, de respeito, mesmo se o outro é diferente de como eu gostaria que fosse? Este é um tempo de crescimento para cada um de nós, no qual devemos aprender a marcar o ritmo dos dias, que já não é controlado pelo trabalho agitado nem por uma gestão familiar dominada pelo “fazer”. São horas dadas à nossa capacidade de deixar espaço para o outro dentro das paredes estreitas de nossas casas. Quão importante é, nesta nova dimensão para que somos lançados, que o marido e a mulher saibam olhar-se nos olhos e conversar um com o outro, programando juntos as horas do dia, conscientes de que dentro das paredes da casa há uma bela presença que brota do seu relacionamento: Jesus. Porque este não é apenas um tempo de treino humano, mas também espiritual. É um tempo de pré-evangelização, nas casas e através das casas, como no tempo das primeiras comunidades cristãs, durante o qual o Senhor nos convida a reunirmo-nos como famílias, a rezarmos juntos, à volta de uma vela acesa, para nos lembrar que existe Alguém que nos mantém juntos e que, neste contexto de desorientação, nos quer bem. Um tempo que nos permitirá, depois, voltar a celebrar nas igrejas, mais conscientes e mais fortes da presença de Jesus nas nossas vidas quotidianas.

Esforcemo-nos, então, por aceitar o convite que o Senhor nos dirige nas nossas casas: reunamo-nos, em família, no Domingo, para celebrar de uma maneira mais solene aquela liturgia doméstica que geralmente, em virtude da presença de Jesus, é realizada através de gestos entre os esposos (“os gestos de amor vividos na história dum casal de esposos transformam-se numa «continuidade ininterrupta da linguagem litúrgica» e «a vida conjugal torna-se de algum modo liturgia».”- Amoris Laetitia 215).

Fazer isto é simples: podemos reunir-nos todos numa sala, recitar um salmo de louvor, pedir perdão uns aos outros com uma palavra ou gesto entre esposos e entre pais e filhos, lendo o Evangelho do Domingo, expressar um pensamento sobre aquilo que a Palavra provoca em cada um, formular uma oração pelas necessidades da família, daqueles que amamos, da Igreja e do mundo. E, por fim, confiar ao cuidado de Maria a nossa família e cada família que conhecemos.

Todas as famílias podem fazer isso, porque Jesus disse: «onde dois ou três estão reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» Mt 18,20. E porque não tentar fazer comunidade, rezando no Domingo com outras famílias, por Skype ou através de outros sistemas de áudio ou videoconferência, aproveitando as vantagens da tecnologia moderna? À vez, podemos deixar ler os nossos filhos ou alternar as vozes dos casais e das famílias ligadas.

Lembremo-nos de que os esposos são o sinal do Mistério pascal que é celebrado em cada eucaristia («Os esposos são, portanto, para a Igreja a lembrança permanente daquilo que aconteceu na cruz», Amoris Laetitia, 72); eles são profecia, anúncio incarnado na quotidianidade feita de pequenos gestos, que exprimam o dom de si mesmos, como fez Jesus. Aproveitemos este tempo um pouco estranho para acolher e viver o Espírito nas nossas casas e redescobrir a riqueza e o dom das nossas Igrejas domésticas, juntamente com Jesus, que habita connosco.

+ Kevin Card. Farrell

Prefeito

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