Bergoglio, o padre que aprendeu a rezar

Evocando em particular um dos períodos mais negros da história da Argentina, a altura em que vigorou no país uma brutal ditadura militar, o filme italiano “Francisco, o Papa do povo”, recentemente estreado em Portugal, conta-nos a história de Jorge Bergoglio, desde os seus 22 anos, mostrando, em simultâneo, o percurso feito pelo actual Sumo Pontífice e os muitos “nós” que teve de desatar, em conjunto com a luta que foi sempre obrigado a travar entre a cabeça e o coração. Fiel à defesa dos que vivem nos subúrbios existenciais da vida e nesta dualidade em que o coração parece sempre levar a dianteira, Bergoglio manteve a coerência. Antes de ser Papa. E depois…

 

POR HELENA OLIVEIRA

“As ordens são-me impostas sobretudo pela minha consciência”. Não é possível saber se a frase é real, mas pelo menos ecoa muito do que Jorge Bergoglio, enquanto Jorge Bergoglio, e Francisco, enquanto Chefe da Igreja Católica, mostra ser uma das suas principais características. E foi proferida no filme “Francisco, o Papa do povo” [na versão original, italiana, “Chamem-me Francisco – O Papa do povo”], em cartaz nas salas de cinema portuguesas desde a passada semana, apesar de ter estreado em Itália, em Dezembro de 2015.

Se desde que foi eleito como o sucessor de Bento XVI, em Março de 2013, muito e muito se escreveu sobre a vida de Francisco, tanto quanto se analisou a sua “personalidade muito própria” e, talvez o maior dos “mistérios”, o quão querido é para crentes e não crentes, é mais do que provável de que nada do que se poderá grafar na semana em que virá a Portugal será novidade. Pelo contrário e muito pouco habitual dada a antecedência, o Vaticano resolveu até divulgar, no passado dia 8, a oração que irá proferir na tarde de sexta-feira, na Capelinha das Aparições, na visita que fará a Fátima.

Como se pode ler na oração, Francisco apresentar-se-á, em Portugal, como “peregrino da luz”, “peregrino da paz”, “peregrino da esperança” e “bispo vestido de branco”, em coerência também não só com o seu “estatuto” de verdadeiro “peregrino da fé”, mas com a forma como se apresentou na varanda central da Basílica de São Pedro, quando eleito Papa, vestindo apenas a batina papal branca, e isento de qualquer elemento mais faustoso, algo inédito na talvez mais solene cerimónia da Igreja Católica.

Mas Jorge Bergoglio, e sendo um jesuíta, não deixou também de ser coerente com a ordem religiosa de onde é proveniente e na qual se professam votos de pobreza. Aliás, e no filme em causa, que retrata a sua vida desde os 22 anos, e mesmo durante o tempo em que viveu como cardeal, andava normalmente de transportes públicos – “porque é assim que melhor se conhecem as pessoas”, como declarou – ou com uma pequena e velha Renault 4L e sempre vestido sem quaisquer ornamentos. É também famosa a sua insistência em usar sapatos pretos – em vez dos tradicionais múleos, o calçado vermelho próprio dos papas -, já para não falar do crucifixo que continua a usar, de aço e não de ouro, e que é o mesmo que utilizava enquanto foi cardeal.

Ou, e por outras palavras, no filme assinado pelo realizador Daniele Luchetti, e apesar de o mesmo se centrar, em particular, no período em que a ditadura militar semeia o terror na Argentina, a história de Jorge Bergoglio cruza-se, inevitavelmente, com o conturbado e perturbador clima político que ali se viveu, estando, em simultâneo, carregada de uma espécie de “simbologia da simplicidade” que Francisco tenta manter desde que foi eleito Sumo Pontífice.

© Eltiempo

Jorge, rezas mal…

Praticamente desconhecido do mundo leigo até meados de 2013, Francisco é hoje e sem dúvida uma das figuras mais famosas e mediatizadas do planeta. As biografias, filmes, documentários, livros e material diverso que existe sobre este tão acarinhado “Papa do povo”, tentam não só traduzir a sua vida, como também a sua sui generis personalidade e a sua presença nos media – que aproveitam as suas “frases bombásticas” para as colocar num contexto mais ideológico do que religioso – é uma constante.

Mas será bom recordar que a sua vida privada, antes de ser exposta aos olhos do mundo, em muito reflecte o seu posicionamento face aos desafios da Igreja e, consequentemente, aos “grandes problemas globais” e a muitas das causas que fervorosamente defende.

Nascido no seio de uma família de imigrantes italianos, Jorge Maria Bergoglio viveu de forma simples, no Bairro Flores, em Buenos Aires, este mesmo composto por imigrantes pertencentes a uma classe média baixa, o que contribuiu para que o actual Papa cedo aprendesse a se identificar com o sofrimento e dificuldades dos que o rodeavam. Filho de um contabilista e de uma mãe que sonhava que o seu Jorge viria a ser médico (depois de obter o diploma em Química da Escola Industrial de Buenos Aires), é aos 22 anos e numa altura em que trabalhava num laboratório de análises químicas, que decide seguir a vida eclesiástica, e que inicia a sua longa educação teológica, tendo ingressado, como noviço, na Companhia de Jesus, em finais dos anos de 1950. Para trás deixaria uma namorada, as saídas com os amigos e a sua paixão pelo tango, tendo-se mantido contudo e até hoje um verdadeiro aficionado do futebol – é adepto entusiasta do Club Atlético San Lorenzo (criado, em 1908, para ajudar jovens desfavorecidos, pelo padre salesiano Lorenzo Massa).

Numa das cenas iniciais do filme em causa, e tentando explicar ao seu director espiritual e a altos membros do clero argentino por que motivo queria ser missionário e ir para o Japão, mesmo depois de lhe ter sido retirado um pulmão e de não dominar ainda os conhecimentos necessários para tal empreendimento, o seu dom da palavra – em conjunto com uma já bem presente irreverência – levá-lo-iam a ouvir uma espécie de “raspanete” por parte dos seus superiores. “Queres fazer o bem, antes sequer de o entenderes e isto só pode ter uma razão: rezas mal”, disseram-lhe. Não contente com esta afirmação, Bergoglio riposta em discordância e torna a ouvir: “Tens de aprender melhor as coisas simples (…), tens de aprender que a fé não deve ser triste”, disseram-lhe também, sugerindo que não podia “amuar” e que teria um longo caminho de aprendizagem pela frente.

E foi o que fez desde então. Como sumariza o jornalista e sacerdote Antonio Pelayo, correspondente em Roma há mais de três décadas e conhecedor do percurso de “Bergoglio até ser Francisco”, enquanto Papa, conta com vários elementos a seu favor: uma sólida formação teológica por trás da sua descontracção, e o facto de ser um homem do ‘governo’: foi provincial dos jesuítas aos 37 anos, bispo com 46 e aos 59 presidente da agitada Conferência Episcopal Argentina. Sabe mandar. Não deixa passar. Não recua. É um homem prático, organizador e de hierarquia. E, como bom jesuíta, gosta de gerar debates”.

Bergoglio “aprendeu a rezar” nos muito anos em que viveu não só nos bastidores eclesiásticos argentinos, mas e principalmente, nas ruas e bairros pobres de Buenos Aires.

Como sempre fez questão de afirmar, “se as pessoas não vêm à Igreja, é a Igreja que tem de ir ter com as pessoas” e foi o que fez, não só no conturbado período da ditadura militar que sufocou a Argentina, em particular desde 1976, altura em que muitos “subversivos” foram raptados, torturados e mortos, padres incluídos, mas já nos tempos “modernos”, quando e por exemplo o presidente argentino Néstor Kirchner o haveria de acusar de ser o “líder da oposição”. Afirmam os observadores que a forma como incessantemente falou das injustiças sociais incomodou, sobremaneira e sempre, as várias estruturas do poder político argentino, sendo que a imprensa foi muitas vezes responsável por politizar as suas posições. Mas, e ao contrário do que afirmavam os seus críticos, Bergoglio nunca teve um discurso partidarista, tendo sido antes vítima de uma “vendetta” política [de acordo com muitos analistas], e “apanhado” no meio da “Guerra Suja” [que engloba o período entre 1976 e 1983], em cuja horrenda ditadura vigorou uma generalizada violação dos direitos humanos, a qual afectou também muitos padres que viviam, doutrinavam e defendiam os excluídos nas favelas mais pobres de Buenos Aires, na medida em que muitos deles eram, convenientemente, associados a movimentos revolucionários.

No filme, é retratada a história de dois sacerdotes jesuítas amigos de Bergoglio, Orlando Yorio e Francisco Jalics, os quais davam apoio social e pastoral a uma comunidade muito pobre da capital argentina e que foram avisados por Bergoglio que as suas “actividades” poderiam estar a ter uma conotação mais política que religiosa. Na altura, e já enquanto líder dos jesuítas, foi avisado por Roma que os “excessos dos padres das favelas deveriam ser refreados”, tendo transmitido a sua preocupação aos dois sacerdotes em causa, que se recusaram a abandonar a favela, a qual acabaria por ser invadida por militares, sendo estes raptados e torturados.

O episódio de Jalics e Yorio é um dos pontos fortes do filme realizado por Daniele Luchetti enquanto “interpretação” da personalidade de Bergoglio e como alguém que sempre lutou em prol dos mais desfavorecidos, perseguidos, necessitados e excluídos. Apesar de começar com a chegada do Cardeal Bergoglio a Roma, para fazer parte do conclave que iria eleger o próximo chefe do Vaticano e onde o “mesmo” pergunta “que estou eu a fazer aqui?”, o filme recorre ao “modo flashback”, regressando de imediato à sua vida em Buenos Aires em 1960, o mesmo acontecendo com outros períodos da vida do actual Papa, acabando com a sua eleição e com as imagens, reais, do seu primeiro discurso à multidão de crentes reunida na Praça de São Pedro.

De volta a 1960, e ao esconder, no colégio de jesuítas que dirigia, numerosos jovens perseguidos pelo regime, ajudando-os a fugir depois para o Uruguai, à “oferta” das suas roupas e da própria identidade a um outro dissidente para este poder passar a fronteira para o Brasil, ao baptizar, sem qualquer julgamento, o filho de uma juíza, mãe solteira, a qual se viria a tornar sua amiga e “cúmplice” na ajuda aos “desaparecidos e torturados”, ao consolar as mais tarde denominadas “Mães da Praça de Maio”, cujos filhos desapareciam sob a nuvem negra da ditadura, Bergoglio foi obrigado também a uma “gestão no arame” assente num equilíbrio difícil entre a figura de autoridade que já representava enquanto superior provincial jesuíta – e os seus deveres para com os seus superiores e com o próprio Vaticano – e a realidade tortuosa em que vivia e com a qual manifestamente sofria – condenando-a veementemente. A frase “há que seguir a cabeça ou o coração” é repetida no filme como uma espécie de “alerta de consciência”para com as suas responsabilidades eclesiásticas, mas sobretudo morais, e é nessa dualidade que o coração parece sempre levar a dianteira.

Perante o desespero que sentiu em particular quando os dois sacerdotes jesuítas foram raptados, Bergoglio arriscou interceder junto das mais altas e irredutíveis instâncias militares, bem como junto da própria Igreja, para pedir a sua libertação. Efectivamente, e cinco meses passados sobre o rapto, e depois de um sofrimento atroz no centro clandestino de detenção, situado na Escola Superior Mecânica da Armada (ESMA), e para onde eram enviados os opositores do regime, Francisco Jalics e Orlando Yorio seriam libertados. Às autoridades, Bergoglio jurou que estes nada tinham a ver com a política e à medida que o regime ditatorial se tornava cada vez mais tenaz, o actual Papa foi também obrigado a calcorrear a estreita linha que o “defendia” da fúria dos generais e a proteger, em simultâneo e sempre que podia, amigos, conhecidos e desconhecidos que iam aparecendo e/ou “desaparecendo” perante os seus olhos.

© DR

A Virgem e os “nós” de Bergoglio

Uma outra fase da vida de Jorge Bergoglio é retratada nesta longa-metragem que foi filmada em Itália, na Argentina e na Alemanha, esta última o local onde o primeiro papa latino-americano haveria de terminar os seus estudos doutorais em teologia, corria o ano de 1986. Numa das cenas mais bonitas do filme, em que Bergoglio entra na Igreja de São Pedro, em Augsburg e olha para uma pintura de uma Virgem que remonta a 1700, ao actual Sumo Pontífice é contada, por uma mulher simples e do “povo” a história da Nossa Senhora Desatadora de Nós ou a quem devemos dirigir as nossas preces quando os “nós” da vida nos apertam o coração e as dificuldades parecem estar para além do nosso controlo. “Tristeza, medo, pobreza…”, elenca a mulher. No filme, Bergoglio chora, recordando os episódios negros de que foi testemunha e, desde então, conhece-se-lhe a especial devoção que nutre por esta Virgem, ao ponto de a ter “exportado” um pouco por toda a América Latina [no Brasil é muito conhecida], pois ao voltar a Buenos Aires levou vários cartões-postais com a réplica da pintura existente na Igreja de San José del Tal, a primeira a receber a sua imagem, oferecendo-os a muitos dos seus amigos.

E é também quando volta a Buenos Aires, e já enquanto bispo auxiliar, que continua a visitar os mais pobres e carenciados, promovendo, com sucesso e muita coragem, iniciativas variadas, seguindo a missão a que sempre se propôs em diversos bairros da periferia da capital argentina, conhecida também por ser uma das cidades mais multiculturais do mundo, muito em virtude dos milhões de imigrantes que nela assentaram as suas vidas e acompanharam a sua conturbada história.

A história da mediação de um grave conflito entre os moradores de um bairro muito pobre da periferia e as autoridades municipais que queriam demolir as suas casas é também uma das cenas fortes retratadas no filme. Bergoglio não só intercedeu junto de um executivo da autarquia, oferecendo-lhe, no final, uma estampa da Virgem Desatadora de Nós, como rezou uma missa, no meio da fúria dos soldados a cavalo, as escavadoras que iriam deitar abaixo as casas e o desespero dos moradores, conseguindo que as forças policiais se juntassem na solidariedade das palavras que proferia e na imagem de paz que transmitia.

Como já foi dito neste artigo, pouco ou nada parece ficar por escrever na semana em que Jorge Bergoglio, agora Papa Francisco, virá a Portugal a propósito do centenário das aparições de Fátima aos pastorinhos. Mas nunca é demais relembrar a ideia de coerência de um Bergoglio que sempre defendeu os que vivem nos subúrbios existenciais da vida e do agora Sumo Pontífice que continua a lutar pelos mesmos.

Aliás, a antestreia do filme “Chiamatemi Francesco: il Papa della gente”, que teve lugar a 1 de Dezembro de 2015 na Sala Paulo VI, é mais uma prova dessa coerência. Sem passadeira vermelha, foram convidados pelo próprio Francisco cerca de sete mil “excluídos”, entre sem-abrigo, refugiados, idosos, enfermos e até prisioneiros [com uma autorização especial], em conjunto com os voluntários, religiosos e leigos que deles cuidam e, é claro, os produtores, o realizador, os actores e os demais intervenientes desta longa-metragem não supervisionada, mas “aprovada”, pelo próprio Vaticano.

E mais palavras para quê? Francisco continuará, decerto, a desatar tantos nós quanto os que lhe forem possíveis. Afinal, por alguma coisa lhe chamam o Papa do povo.

Artigo publicado em “Valores, Ética e Responsabilidade” – ACEGE – 11de maio de 2017

 

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